Há uma nova moda intelectual que olha para o passado com os mesmos olhos moralistas com que avalia o presente. Tudo o que não se ajusta às sensibilidades da geração das causas é condenado em bloco, e a Idade Média, esse milénio de mosteiros e manuscritos, é novamente atirada para a fogueira. Chama-se-lhe “Idade das Trevas”, como se entre o colapso de Roma e o Renascimento o mundo tivesse adormecido num nevoeiro de ignorância e superstição. É o wokismo histórico em pleno: simplificar para condenar, apagar para moralizar.
Os novos iconoclastas não sabem, ou fingem não saber, que foram precisamente os monges cristãos, de penas nas mãos e velas acesas nas celas húmidas dos mosteiros, que salvaram as obras de Aristóteles, Cícero e Virgílio. Que enquanto o “mundo antigo” caía em ruínas, o mosteiro de Monte Cassino copiava pacientemente os clássicos, e que os monges de Cluny e de Cîteaux preservavam o latim e ensinavam a ler aos filhos da nobreza. Sem os copistas medievais, o tão celebrado humanismo renascentista nunca teria existido.
A ironia é que muitos dos que hoje denunciam o “obscurantismo cristão” escrevem as suas teses num alfabeto que só sobreviveu graças à Igreja e numa universidade cuja origem está nas escolas catedrais de Paris, Bolonha ou Oxford. A Idade Média inventou as universidades, o hospital, o relógio mecânico, os óculos, o moinho de vento, o sistema bancário e a própria ideia de ciência experimental. Roger Bacon, monge franciscano do século XIII, já defendia que o conhecimento devia basear-se na experiência e na observação, séculos antes de Galileu. Que trevas são estas, afinal, que brilham com tanto engenho?
Mas o preconceito persiste e infiltra-se até no discurso político. Em fevereiro de 2023, no Parlamento, Rui Tavares, historiador e deputado do Livre, ao defender a vacinação, perguntou se queríamos “voltar à Idade das Trevas, onde se permite nada mais do que uma linha ortodoxa feita dogma”. A citação é literal. E ele não está sozinho. A imagem da “Idade das Trevas” é corrente no discurso político progressista internacional quando se trata de denunciar retrocessos civis: o deputado trabalhista britânico David Lammy chegou a qualificar um ataque racista como algo que “belongs in the dark ages”; nos Estados Unidos, Kamala Harris e Joe Biden usaram a expressão “not going back to the dark ages” em defesa dos direitos reprodutivos; e até em parlamentos da Commonwealth a fórmula reaparece para condenar propostas vistas como regressivas. Estes usos políticos do termo reforçam o seu estatuto como arma retórica: conveniente, eficaz, mas historicamente imprecisa.
O wokismo histórico é, pois, um anacronismo travestido de virtude. Julga o século XIII com os critérios do século XXI, ignora as continuidades e transforma mil anos de história num espantalho político. E, ao fazê-lo, apaga-nos a memória das catedrais, dos mosteiros, dos mestres que ensinaram a pensar e dos inventores que transformaram a Europa rural num laboratório de engenho.
E apaga também algo maior: a revolução espiritual das ordens mendicantes. Foi no coração da Idade Média que nasceram os franciscanos e dominicanos, que levaram a Igreja das torres dos mosteiros para o meio das ruas e dos pobres. São Francisco de Assis, com a sua fraternidade cósmica, restituiu à fé o amor pela natureza e pela simplicidade evangélica. O seu exemplo e o dos primeiros frades menores renovaram o rosto da Igreja e reacenderam a mensagem do cuidado dos pobres, da fraternidade e da humildade. Se isto foi uma idade de trevas, então como é que o mundo poderia ser mais iluminado?




