Com os seus passos curtos, aproxima-se lentamente, preparando-se para um momento de recordações. Sabe que é disso que vai falar, e não se acanha.

No alto dos seus 78 anos - 79 no próximo dia 24 de novembro - o homem, que outrora percorria a cidade de Loulé com a sua boina característica, vendendo cautelas e dedicando quadras a quem por ele passava, vive agora os seus dias na Santa Casa da Misericórdia de Loulé, recusando-se a sair à rua: o medo de cair é agora maior do que a vontade de ver o mundo. No entanto, Manuel Vitorino Barreto Lamy, ou apenas Lamy, como todos o conhecem, contínua a viajar, recordando as muitas histórias que tem na memória, de quando distribuía alegria e boa disposição pela cidade.

Lamy cresceu na cidade de Loulé, onde estudou até ao exame da 4ª classe. A professora, a quem ainda criança dedicava quadras, terá deixado nele a vontade de continuar a estudar, mas as dificuldades financeiras não o permitiram. Lamy, que por não gostar não aprendeu o ofício de seu pai, sapateiro, mas também não sonhou com nenhuma outra profissão, deixou que a vida se encarregasse de o guiar.

Tornou-se mais tarde cauteleiro, talvez por influência de seu pai, que também trocou o calçado por jornais e lotaria, ao abrir a Tabacaria Lamy, ainda hoje situada na Avenida José da Costa Mealha. Mas Lamy não era moço de loja. Vendia na rua, anunciando os dias da lotaria no seu megafone. Não havia quem não conhecesse o vendedor de cautelas que dizia poesia a quem passava “com razão e a sorte na mão, aproveite a ocasião”. Prometia sorte e chegou a dá-la. “ Vendi três vezes a sorte grande, uma em Quarteira, outra em São Brás de Alportel e outra aqui, em Loulé” recorda, “os números vencedores foram o 16561/20974/15557”, diz, cantando--os como um profissional. “E também vendi segundos e terceiros prémios. Eu corri o Algarve todo, de Lagos a Vila Real de Santo António a vender lotaria”, acrescenta.

Nunca saiu do País mas viu muito dentro deste. Folião por natureza, no Carnaval e no resto do ano, acompanhou muitos grupos e associações da cidade por Portugal fora, anunciando no seu megafone os eventos da sua Terra Natal. Emocionado recorda com saudade um dos muitos amigos desse tempo, Fernando Soares, fundador do Rancho folclórico Infantil de Loulé, de quem ainda guarda uma fotografia na sua carteira de memórias. Ao lado desta, outras fotografias: do seu pai, do seu irmão e da sua Padroeira erguida pelos Homens do Andor. Foi à Mãe Soberana que este homem, que não casou (embora tivesse gostado), entregou o seu coração. Só isso explica o reluzir dos seus olhos e o misto de sentimentos que o invade quando houve o nome da Mãe Soberana. É com tristeza que revela que já não acompanha a imagem, como fizera ao longo de tantos anos. Mas logo depois deita vivas – Viva a Mãe Soberana!, Viva os homens do Andor! - e trauteia sem parar, a marcha que dá ritmo a esta Procissão. Há alguns anos que a dificuldade em andar não lhe permitem subir a ladeira, mas fica «na cidade» e aguarda a chegada dos Homens do Andor “Quando eles descem conhecem-     -me e vêm-me abraçar”, recorda comovido.

Na sua carteira, Lamy guarda também uma foto sua a vender cautelas, umas das mais emblemáticas. Sabe e sente que é uma figura da cidade. De família tem apenas um sobrinho, filho do irmão que perdeu num acidente. Poderia ser um homem só e triste, mas não é, Manuel Vitorino Barreto Lamy, sente-se acarinhado pelas pessoas da cidade e diz, com o seu espírito alegre, quase de menino, “sim, sou feliz!”.

 

Por Verónica Chapuça

 

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