Tem 67 anos e já foi vendedor de automóveis, rececionista de hotéis, vendedor de seguros, gerente de bares e restaurantes e professor do ensino básico.

Ainda assim, Valentim Filipe é ainda conhecido como um dos grandes guitarristas do Fado, tendo já uma carreira com quase 60 anos. Nesta entrevista, fala-nos dos seus projetos, das dificuldades e de um desejo para o Algarve, que envolve, claro, o Fado.

 

A Voz do Algarve (V.A.) - Podemos dizer que o Valentim Filipe nasceu para a música. Define-se como um guitarrista? Como começou a tocar?

Valentim Filipe (V.F) - Sim, embora as minhas “bases” sejam de acordeonista. O meu pai era acordeonista e começou com seis anos de idade. Eu devo ser o músico mais antigo a ganhar dinheiro, uma vez que tinha 9 anos de idade quando comecei a lucrar e fiz o primeiro baile. Eu tocava muito bem, mas era extremamente tímido. Uma vez o meu pai disse-me que tinha dois bailes, um em Vale-Parra e outro ali perto. Então, acabou por me dizer para eu fazer um dos bailes e aguentar o “barco” uma hora, que ele no final do outro baile ia ter comigo. Só sei que ele chegou onde eu estava, já eu tinha terminado de tocar.

 

V.A. - Apesar de se definir como guitarrista, já passou por outros géneros musicais durante a sua carreira. Quais foram?

V.F. - Sim, é verdade. Durante a minha carreira, fui baixista de uma banda rock, toquei órgão eletrónico em bailaricos e participei em conjuntos musicais. O Fado chega quando eu era rececionista num Hotel na zona de Albufeira e havia um guitarrista amador do Barreiro que precisava de um violista para tocar com ele. Eu sabia tocar três ou quatro acordes, aceitei o desafio, e começa aí a minha aventura no Fado, há cerca de 40 anos. Nessa altura, haviam vezes que não conseguia ir trabalhar porque já tinha contratos para tocar à noite e não dava para conciliar. Acabei por sair do meu trabalho na receção, ponderando sempre voltar, mas fui continuando na música até hoje.

 

V.A. - Mas toca apenas instrumentos ou também canta Fado?

V.F. - Não canto nada atualmente, mas na altura cantava nos bailaricos.

 

V.A. - Para além de ter começado cedo na música, foi um impulsionador da música na região algarvia. Fale-nos dos concursos de Fado que organizou.

V.F. - -Existem no Algarve cerca de 30 fadistas porque eu resolvi um dia organizar concursos de Fado amador. O primeiro concurso foi em 1994 com regime de eliminatórias pelas Freguesias e final na sede de concelho. Em Lisboa, existem várias coletividades para quem quiser cantar, em que fazem sobretudo matinés aos fins de semana à tarde, e onde contratam guitarristas para os interessados se mostrarem. No Algarve não existia a mínima hipótese de se fazer isto, e estes concursos foram a abertura que faltava, não só para os miúdos, como para os adultos que tinham o sonho de cantar. Conheço pessoas que começaram a cantar aos 85 anos. Temos gente que começou a cantar nestes concursos e foram depois para Lisboa atrás do sonho.

 

V.A. - Ao longo dos últimos tempos realizou vários projetos, como “Amália Sempre”, “Tudo Isto é Fado” e “Al-Mouraria”. O que os diferencia?

V.F. - -Estes grupos são muito diferentes, de facto. No caso do “Amália Sempre”, tudo começou porque eu fiz um poema no dia do seu falecimento e depois liguei para um amigo com a ideia de criarmos um projeto sobre Amália. Contudo, a Fundação Amália Rodrigues está a exigir direitos de autor e então o meu projeto ficou mais parado. Já o “Tudo Isto é Fado” mostra o Fado de três localidades diferentes:  o Fado de Lisboa, o Fado do Ribatejo e o Fado de Coimbra. O Fado Marialva, do Ribatejo, fala de campinos, cavalos, o Marquês de Linda a Velha, entre outros temas. Já o Fado de Lisboa, é conhecido como o “Fado da desgraçadinha” e está em constante evolução, tendo até “angariado” músicos que vieram do Jazz tocar contrabaixo, assim como muitos jovens que tocam bem a guitarra portuguesa. Por fim, o de Coimbra eu não considero bem Fado, mas tem a guitarra portuguesa, afinada de outra forma e tem outra técnica de tocar.

 

V.A. - Apesar do sucesso alcançado ao nível de autarquias, esses concursos deixaram de acontecer. Porquê?

V.F. - Deixaram sim, porque também deixaram de aparecer novos talentos. Mas a verdade é que podemos também referir que essas pessoas deixaram de aparecer, porque deixaram de existir concursos. Nos últimos 10 anos, apareceram poucos talentos no Algarve, destaco o César Matoso e o João Leote. Mas sinceramente, não sinto que tenham aparecido grandes talentos. As pessoas com a falta de apoios também se desmotivam…

 

V.A. - É difícil fazer vida profissional somente do Fado?

V.F. - Ainda existe um longo caminho para isso acontecer. Costuma-se dizer que quando é uma “vedeta” a cantar, o que menos importante é cantar bem. O mais importante é criar uma imagem, gerir a carreira e ter capacidade de trabalho. Temos uma série de vedetas neste país (não só na área do Fado, mas em tantas outras), que são medíocres, mas que são vedetas e ganham muito dinheiro.

 

V.A. - Voltando aos seus projetos, nestes últimos tempos surgiram 7 álbuns dos “Al-Mouraria”. Contudo, o “Comvida” junta aqui vários artistas, porquê? Há ainda um facto que, para os mais atentos, pode ser curioso… O que significa a chaminé e a lua no logotipo do grupo?

V.F. - O “Comvida” é um álbum que reúne vários nomes sim. Os grupos têm o seu desgaste e ficámos sem algumas das cantoras, então eu decidi convidar 14 intérpretes diferentes para fazer o álbum. Este álbum foi o número 1 de top de vendas em Portugal.

 

É de facto curioso sim. No logotipo dos Al-Mouraria, neste projeto, existe uma chaminé com uma lua, que é uma referência a um tema de Amália Rodrigues, chamado “Lua”, que nós gravamos no Museu Municipal de Faro. Foi o primeiro tema que gravamos para o álbum, então achamos justa esta alusão na capa.

 

V.A. - É inevitável falar do “Comvida” sem comentar a participação do Paulo Abreu de Lima, que nos deixou em janeiro de 2021, e que foi muitos anos letrista da Marisa, Raquel Tavares, Cuca Roseta, Adiafa e Rui Veloso e participa neste projeto com dois temas: o “Amor Sem Tempo” e “Margarida vai à Fonte”. Ele chegou a ver os discos gravados?

V.F. - Eu liguei-lhe a dizer que o segundo single do CD era o “Margarida vai à Fonte” e que ia sair dois dias depois e ele faleceu no dia seguinte à nossa chamada. O Paulo era um amigo que me ligava muitas vezes e com o qual privada em almoços, onde ele me trazia pilhas imensas de letras de músicas e me dava a escolher o que eu mais gostava. Vou dando algumas das suas letras a cantores que me pedem.

 

V.A. - O Valentim também é Presidente da Associação de Fado do Algarve. O que faz essa associação?

V.F. - A Associação de Fado do Algarve tinha inicialmente como objetivo promover este género musical, quando começaram os concursos de Fado. Atualmente, temos um protocolo com a Câmara Municipal de Faro onde fazemos Fado no Museu Municipal. Fazemos atuações três dias por semana (sexta, sábado e domingo) na zona histórica. O público é sobretudo estrangeiro e quem atua é o “trio” clássico do Fado, dois músicos e um cantor, que vão alternando. Fazemos também na Associação uma Gala Celeste Rodrigues, que é a madrinha da Associação e irmã de Amália Rodrigues. Para além disso, fazemos ainda espetáculos de solidariedade e, recentemente, tivemos no Cineteatro Louletano uma Gala de apoio ao povo ucraniano. Nesse espetáculo, feito com a maior das dignidades, tivemos 15 cantores, 12 instrumentistas solo e mais um grupo formado por quatro instrumentistas. O dinheiro angariado foi entregue à Asociatia Culturală „Vatra Satului”, uma associação ucraniana.

 

V.A. - Tem ainda uma empresa de espetáculos e representação de artistas, a “Valentim Filipe – Produções de Espetáculos, Unipessoal LDA”. Como funciona a questão de representar artistas?

V.F. - Neste momento é muito complicado ter alguém representado em termos de exclusividade. Diria até que se pode dizer que já não se representa ninguém, é só o contacto. Por exemplo, Ana Moura tem prioridade, mas não tem exclusividade. Nem a Amália o tinha. Represento algarvios, mas também alguns artistas de outros locais. Representar um artista significa discutir o valor do espetáculo, essencialmente.

 

V.A. - Dado o panorama atual dos espetáculos, quanto pode valer uma atuação em termos monetários?

V.F. - Depende um pouco. Se estivermos a falar do valor total com viagem, som, técnicos, luzes e refeições fica na ordem dos seis mil euros. Se for um espetáculo onde exista um som residente, o valor será outro, claro. Não há desculpa para não nos contratar (risos).

 

V.A. - Como é que o Valentim vê o panorama musical aqui no Algarve? Considera que ainda existe muito aquela ideia de que Lisboa é onde existe “tudo”?

V.F. - As coisas cada vez estão menos centralizadas, isso é uma vantagem. Antigamente pensava-se que só se era “vedeta” se fossemos para Lisboa. Temos, neste momento, uma série de projetos que não são de Lisboa, como os “The Gift” (Alcobaça), “Quinta do Bill” (Tomar), “Os Quatro e Meia” (Coimbra), entre tantos outros. No Algarve é igual, temos a “Viviane” e os “Íris”. Defendo que não temos de estar em Lisboa para termos sucesso, há muitas formas de fazermos atualmente as coisas. Além disso, aqui no Algarve temos um clima extraordinário. Acredito que a qualidade esteja a aumentar e que muita gente sai do Algarve para fora já com valor afirmado.

Vou dar um exemplo: Temos o Tiago Pais Dias, ex-marido de Marisa Liz, que está agora a formar um novo grupo cujo baixista é Algarvio. Esse mesmo baixista está, neste momento, a gravar com o Jonas, um rapaz que esteve agora no “Festival da Canção” e tem ainda um projeto chamado “Bate Fado”, com espetáculos marcados na Coreia e em Berlim. Esse baixista chama-se Tiago Valentim e é o meu filho. É um bom exemplo de alguém que vive no Algarve, mas que foi chamado para grandes projetos.

 

V.A. - Se pudesse mandar no Algarve, o que mudaria no setor musical/cultural?

V.F. - É uma boa questão. Fazia um Festival de Fado no Algarve. Só há um Festival em Lisboa, aqui não temos nada. Seria tão fácil, fazermos espetáculos nas Freguesias e acabando com grandes festas nas sedes de Concelho. Há muitas salas de espetáculos boas. Já fiz várias propostas, mas parece que ninguém se quer chegar à frente.

Em Salir temos um projeto em andamento, chamado “Fado, Tapas e Vinho”, com tasquinhas. Mas ainda é muito inicial, é melhor não avançar muito.

 

V.A. - O que é que um músico com uma carreira tão longa e afirmada como a sua, diria a um jovem cantor que se quer iniciar agora na música e no Fado?

V.F. - Um cantor tem de ir “beber” às casas de Fado. Neste momento, esses espaços são agora lugares de passagem para chegar ao estrelato. Têm de ir aos encontros e coletividades de Fado e ao Grupo Popular da Mouraria, onde fazem matines. Têm ainda de cantar muito e esperar pelo convite, para além de manterem sempre a humildade. Os jovens têm ainda de ter capacidade de trabalho.

 

Por: Nathalie Dias