Quando de Cultura se trata, Luís Guerreiro é uma das atuais figuras de relevo no que se refere a conhecer a História do Concelho de Loulé, mas não só.
Com 56 anos, Luís Manuel Mendes Guerreiro, nasceu em Querença, a 4 de setembro de 1960, filho de Manuel Guerreiro (Manuel Custódio) e Maria da Silva Mendes (90 anos) e irmão de Maria de Deus. Estudou Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, mas desde cedo percebeu o seu caminho e paixão pela Cultura.
Com cerca de 3 décadas de atividade na Câmara Municipal de Loulé, desempenha também a função de Presidente da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, sedeada em Querença.
Uma nova batalha surgiu este ano na vida de Luís Guerreiro. Diagnosticado em fevereiro com um tumor cerebral, o que o obrigou a reduzir drasticamente o ritmo de trabalho e de vida, este homem ativo da Cultura Regional e Nacional não acredita na derrota e prova diariamente ser um “grande guerreiro”, e não apenas de nome.
A Voz do Algarve – Apesar da sua formação como Eng.º Civil, sempre foi um homem dedicado à cultura. Que importância tem a cultura ao longo da sua vida em termos pessoais, profissionais e autárquicos?
Luís Guerreiro – Trabalho nesta área praticamente desde que me formei, em 1988, quando acabei o curso de Engenharia e vim para Loulé. Em Engenharia, só trabalhei quando acabei o curso e fiquei uns dois anos por Lisboa. Um dia, vim ao Algarve e fui convidado para trabalhar na Câmara Municipal de Loulé (CM Loulé), e aceitei. Não sei explicar esta minha ligação à Cultura. Muitas vezes diz-se que o interesse pela cultura está relacionado com o ambiente familiar, o que não se verifica neste caso, porque na minha casa não havia livros, não se liam jornais e não existiam grandes tradições culturais. A única coisa que recordo com alguma saudade dos tempos em que era miúdo, era quando o meu pai contava contos à lareira. Ele sabia o Carlos Magno e os Doze Pares de França todo de cor, por exemplo, e contava-nos estas estórias ao longo de várias noites.
V.A. – Uma vez que o seu interesse pela Cultura surgiu desde cedo, por que motivo não estudou Humanidades e optou pelas Engenharias?
L.G. – Porque, quando chegávamos ao 5.º ano de liceu, tínhamos que optar por Letras ou por Ciências e isso determinava logo a orientação na Faculdade. Quando eu cheguei a essa fase, era muito melhor na escrita, tenho até a impressão que já escrevia para «A Voz de Loulé», mas as minhas professoras de português dessa altura atribuíam-me notas que eu achava injustas, como um 11 ou 12. Então pensei que o melhor era ir para Ciências porque, se tivesse a Matemática e a Física correta, tinham que me dar as notas que eu merecia. Na altura, os cursos de que se falava eram Advocacia, Engenharia ou Medicina. Os meus pais sempre acharam que deveriam investir na educação dos filhos, mesmo não sendo muito normal, nessa altura, as pessoas do campo irem para a Universidade. Da minha escola primária, só fomos dois para a Universidade. Os pais entendiam que era uma coisa desnecessária, era mais importante trabalhar a terra, ajudar na agricultura e era um desperdício ir estudar. Mas, sobretudo a minha mãe, achava que era importante apostar na educação dos filhos para ter uma vida melhor, diferente da que eles tinham.
V.A. – Não se arrepende de ter optado por essa área de estudo, uma vez que a profissão que acabou por exercer ao longo de três décadas nada tem a ver com o que estudou?
L.G. – Não, nunca. A minha atividade na área da cultura começou com o 25 de Abril, quando tinha 14 anos. Foi um despertar, sobretudo para os jovens, que criaram grupos de teatro. Nós, por exemplo, criámos um Grupo Desportivo e Cultural de Querença, onde se praticava desporto e fazia-se teatro. Organizámos também uma biblioteca em Querença. Mas quando fui estudar para Lisboa, essa atividade cultural cresceu ainda mais, porque comecei a frequentar a Gulbenkian, a Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional, onde consultei todos os jornais que Loulé já teve. Frequentava o IST e, quando tinha uma tarde livre ia para a Biblioteca Nacional ou para a Torre do Tombo. Assistia também a espetáculos de ballet e dança, ou seja, comecei a aprofundar a minha atividade cultural. Quando voltei para Loulé, comecei a trabalhar na CM Loulé através de um convite feito no restaurante que o Hélder Martins tinha aberto em Querença. Na altura as coisas funcionavam assim. Eu estava em Lisboa e vim uns dias ao Algarve e fui a esse restaurante. Nesse dia estavam lá os vereadores da Câmara: o Rui Domingos, o José Faísca e não tenho a certeza se o Presidente José Guerreiro Cavaco estava também. Eu sentei-me na mesa e perguntaram-me o que eu fazia. Eu disse que era Engenheiro Civil e eles perguntaram se eu não queria vir para a CM Loulé. Na altura, disse que estava a trabalhar em Lisboa e que queria lá continuar, mas passei alguns dias a pensar naquilo e percebi que já estava há muito tempo em Lisboa e que queria voltar para cá. Fui à CM Loulé e perguntei se o convite se mantinha. Perguntaram-me logo se podia começar no dia seguinte e assim foi.
V.A. – Quando chegou à CM Loulé, começou por trabalhar em que área?
L.G. – Trabalhei uns tempos no saneamento com o Eng.º Custódio e com o Eng.º Brito, os três no mesmo gabinete. Mas houve eleições logo a seguir e ganhou o Joaquim Vairinhos, que tinha sido meu professor de ginástica. Ele convidou-me para Adjunto, o que eu não sabia bem o que era (risos). Foi nesta altura que a dinâmica cultural se iniciou. Loulé, em termos culturais, é uma referência no panorama nacional, tem uma vida cultural muito intensa. Eu estou cá desde 1988, já apanhei várias câmaras e vários partidos, e a Cultura tem sido uma característica sempre presente.
V.A. – Que balanço faz da importância da Cultura para a geração atual?
L.G. – Hoje alterou-se um pouco o paradigma da Cultura. Antes tínhamos uma ideia de Cultura ligada aos pensadores e intelectuais, que permanentemente escreviam sobre a realidade e os tempos que viviam, chegando a condicionar o rumo dos acontecimentos políticos. Mas hoje, quando falamos de Cultura estamos a falar de entretenimento e diversão, as outras coisas são um aborrecimento. Há um livro muito interessante do Prémio Nobel da Literatura, Mario Vargas Llosa, que fala precisamente sobre a civilização do espetáculo e onde chega à conclusão que as pessoas estão mais viradas para o entretenimento, o chamado “consolo”, do que para o espírito crítico dos temas da atualidade. Acho que as televisões têm aqui um papel importante e o que nós vemos é a ausência de debates dos problemas atuais. Claro que se fala muito de Política, Economia e Futebol em todos os canais, mas só isso. Felizmente há muitos festivais literários, mas isso também significa que a Literatura, a poesia e as artes se banalizaram. Por outro lado, começa-se também a valorizar as artes. Hoje, aqui no Algarve, todas as cidades têm galeria de arte, fazem-se exposições permanentes e temporárias. Já em Literatura, por exemplo, temos a Lídia Jorge, uma escritora intelectual a nível internacional, com obras traduzidas em mais de 30 línguas. Temos também no Concelho de Loulé o poeta Casimiro de Brito, e ao nível do Algarve temos o poeta Orlando Rosa, o Gastão Cruz e outros grandes nomes da Literatura. O que acontece muitas vezes é que, apesar de termos esses grandes nomes, a generalidade da população ainda não os conhece bem. Conhece quando ganham prémios ou quando são reconhecidos e vêm nos jornais. Mas a melhor maneira de homenagear um escritor é ler-lhe a obra. Embora, o falar seja importante, uma vez que desperta a atenção a alguns que terão curiosidade de conhecer e saber.
V.A. – Acredita que os mais jovens estão envolvidos com a Cultura, quer em termos regionais como nacionais?
L.G. – Eu penso que as gerações mais jovens são muito bem formadas do ponto de vista universitário, mas que desconhecem muito da nossa História e da nossa Cultura. Mas há uma outra geração, entre os 20 e 30 anos, que está a fazer teses de mestrado ou doutoramento, e que se interessam sobre a Cultura do Algarve e a sua História. São pessoas que se interessam por artes plásticas, pela recriação de tradições perdidas, portanto não está tudo perdido.
V.A. - Sempre ligado à Cultura Louletana em termos autárquicos, aceitou o desafio de liderar a fundação Manuel Viegas Guerreiro. Como tem sido para si essa experiência?
L.G. – Eu conheci muito bem o professor Manuel Viegas Guerreiro, que era natural de Querença e um intelectual e pessoa notável. Era Professor Universitário e uma figura singular da Cultura Nacional. De cada vez que ele vinha ao Algarve, nós encontrávamo-nos. Ele formou os Estudos Gerais Livres com o professor Agostinho da Silva, outra grande referência do espírito crítico nacional. Como o Manuel Viegas Guerreiro não tinha filhos, começou-se a pensar que se deveriam criar condições para receber o espólio dele e, se assim fosse, ele doá-lo-ia todo para a sua freguesia de origem, Querença. Houve um programa de revitalização da aldeia de Querença, financiado por Fundos Comunitários, onde foi incluída a construção do espaço que é hoje a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, com o objetivo de receber esse espólio. Eu estive nesse grupo desde o início. Quando criámos a Fundação, recebemos o espólio e desenvolvemos atividade cultural. Este ano organizámos um festival literário e temos um Centro de Estudos Algarvios, onde se pretende reunir todas as obras publicadas sobre o Algarve. Este Centro de Estudos Algarvios foi criado partindo de uma doação minha, uma vez que, quando fui para Lisboa, comecei a comprar livros sobre o Algarve e já tinha três mil livros. Eu comecei a ver que as Bibliotecas Municipais trabalham muito com a novidade, mas se quisermos consultar um livro do século XIX é difícil encontrar. Para além disso, comecei a constatar que cada vez há mais teses de doutoramento e mestrado sobre o Algarve e é muito difícil encontrar bibliografia. O próximo desafio é criar a Hemeroteca Digital do Algarve, onde se reúnem em forma digital todos os jornais e revistas que o Algarve já teve desde o século XIX até agora. Mas claro que é algo que implica muito investimento.
V.A. – Que trabalho autárquico releva ao longo destes 30 anos, em termos de recuperação de imóveis culturais, atividades e posicionamento de Loulé no contexto regional?
L.G. – Temos feito muito trabalho nessa área. Por exemplo, a Igreja Nossa Senhora da Conceição era uma das obras que, há uns anos atrás, estava completamente deteriorada e não era visitável. O Cineteatro, o Mercado Municipal, o edifício do Atlético, o Palácio das Necessidades e agora o edifício da Música Nova também está a ser recuperado. Há uma série de edifícios, com valor patrimonial, que os vários executivos têm adquirido e restaurado. É evidente que restaurar edifícios custa muito, são orçamentos muito elevados. O Cineteatro é um excelente exemplo, porque esteve quase para ser destruído. Esteve muitos anos alugado, porque foi construído por pessoas privadas e, à medida que foram morrendo, aquilo foi sendo herdado e era difícil fazer uma escritura precisamente porque eram muitos os donos daquele espaço.
V.A. – O mesmo acontece com o Cinema de Almancil, que está a perder-se. Considera que valeria a pena recuperar aquele espaço?
L.G. – Acho que sim. Tem muito boas condições e muita tradição. Mais cedo ou mais tarde penso que acabará por ser adquirido.
V.A. – A Rede Museológica do Concelho é também bastante vasta. Que nos pode dizer sobre este assunto?
L.G. – Foi criada a rede museológica no Concelho, que está interdependente do Museu de Loulé, que já tinha uma equipa de arqueologia e restauro.
Assim, há um museu central, o Municipal de Loulé, que presta apoio a Salir, onde foi construído um Polo Museológico, tal como em Alte onde há o Polo Museológico Cândido Guerreiro, um Poeta que chegou a ser Presidente da Câmara Municipal de Loulé, e cujo espólio foi doado à Junta de Freguesia de Alte. Mais tarde, quando estive na divisão de cultura, propus e foi aceite que se reeditasse a obra crítica do Cândido Guerreiro e já saíram dois volumes. Na Fundação Manuel Viegas Guerreiro, vamos lançar no dia 3 de Dezembro a fotobiografia do poeta Cândido Guerreiro, dia em que ele nasceu.
V.A. - Este último ano tem sido para si, em termos de saúde, um período difícil. Quer falar-nos do embate inicial e de como tem sido a sua recuperação?
L.G. – Tive um percalço de saúde e foi justamente numa cerimónia da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, no dia 20 de fevereiro, quando estávamos a apresentar o projeto «Romanceiro». Antes de começar a cerimónia, eu tive uma forte dor de cabeça. Já tinha tido umas dores de cabeça antes, inclusive no Carnaval, o que me impediu de ir ao baile, mas eu pensei que fosse de estar ao computador ou da coluna. Mas, naquele dia, a dor foi muito forte, por isso tomei um comprimido e consegui ainda fazer a apresentação. Depois, durante a cerimónia, não me apercebi de nada, mas as pessoas notaram que eu falava de maneira diferente. Até o Presidente da Câmara, que me encontrou à noite, perguntou se eu ao almoço tinha bebido um copinho a mais (risos). No dia seguinte, fui almoçar a casa do meu cunhado e mediram-me a tensão e eu tinha a tensão alta muito próxima da baixa. A minha mulher também me dizia que eu andava aos ziguezagues. Então fui às Urgências, onde estava o Dr. Rocheta que me disse para ir ao Hospital de Faro. Mandaram-me fazer uma TAC e fiquei logo internado. No dia seguinte fiz uma Ressonância Magnética e a médica disse-me que tinha que ser operado pois tinha um tumor no cérebro, o que aconteceu no dia 1 de março. O tumor foi removido, fiz radioterapia e quimioterapia, que ainda estou a fazer. No final de agosto, fiz uma nova Ressonância, que apresentava sinais de evolução positivos, mas entretanto o médico que me acompanha adoeceu e todo este tempo tenho estado à espera da consulta.
V.A. – Que alterações se verificaram na sua vida com este problema de saúde?
L.G. – Muitas alterações, nomeadamente na alimentação. Não posso comer carnes vermelhas, lacticínios, beber vinho ou café e como muita fruta. Mas continuo ativo, tenho uma tertúlia em Faro e estou a preparar um artigo para uma revista do Algarve sobre um período do século XIX, o que me obriga a consultar muitos artigos e livros. Felizmente, vivo rodeado de livros em casa e tenho muitos amigos em universidades que me trazem livros que eu lhes peço. Contudo deixei de fazer algumas coisas, como lançamentos de livros e conferências, mas estou desejoso de voltar a trabalhar.
V.A. – Como se sente nesta fase?
L.G. – Sinto-me bem. Ainda tenho alguma dificuldade em dormir, o que tem a ver com a medicação e os tratamentos, mas estou bem.
V.A. – Como foi para si e para a sua família o choque inicial?
L.G. – A fase inicial é a pessoa conformar-se com a situação e enfrentá-la com a equipa médica. Eu não sou derrotista ou pessimista, acredito na Ciência e nos Médicos. Quando fui para o Hospital disseram-me logo que a equipa era excelente, uma das melhores do Hospital de Faro, e eu não tenho qualquer razão de queixa. Foi complicado, porque é o cérebro que é a minha ferramenta de trabalho. Mas acho que não afetou o meu pensamento. Houve uma altura, quando estava a tomar Cortisona, em que inchei muito e as pessoas nem me reconheciam. Mas há já dois meses que não tomo isso. A própria queda do cabelo não foi dramática, até porque eu fiz quimioterapia por via oral, o que é menos doloroso.
V.A. – Qual é a primeira coisa que vai fazer quando acabar o tratamento?
L.G. – Talvez beber um bom vinho (risos).
V.A. - O que é que ainda não fez que pretende fazer?
L.G. – Escrever um livro. Aliás, eu comprometi-me a escrever um livro sobre Quarteira para os 100 anos da freguesia.
V.A. - Que mensagem quer deixar a todos os louletanos, em particular aos mais jovens?
L.G. – O que lhes posso dizer é que se dediquem, se empenhem, trabalhem, estudem e leiam. Participem na vida coletiva, nos problemas que dizem respeito a todos. Digo isto porque tenho filhos que também são jovens e eu sei que, muitas vezes, andam alheados dos problemas que dizem respeito a todos. Gostava também de deixar uma mensagem de agradecimento a todas as pessoas que se têm interessado pelo meu estado de saúde, que me têm enviado mensagens através das redes sociais. São milhares as pessoas que me mandam mensagens, deixo o meu obrigado a todos.
V.A. – O que gostaria de dizer às pessoas que estão também a enfrentar problemas similares em termos de saúde?
L.G. – Eu gostava que as pessoas não se deixassem vencer. Muitas vezes, a gravidade dos problemas é de origem psicológica. Quando se entra em depressão, não acreditamos que vai ser possível recuperar. Eu penso que isso tem uma importância grande no tratamento e na cura das doenças. Eu acho que as pessoas que foram confrontadas com problemas parecidos, muitos derivados do estilo de vida stressante que levamos, devem acreditar que vão conseguir resolver o problema, isso é meio caminho andado. Eu estou convencido que se as pessoas encontrarem caminhos de defesa, em breve estas doenças serão ultrapassadas.
Nathalie Dias