Ele não se fez rogado
Pôs o cravo encarnado
Na espingarda trazia
E aos outros que encontrou
Outros cravos lhe deixou
E deu flores àquele dia
As Armas e os Cravos, Anónimos de Abril – Vol. 1 (2025)
Em cada gesto clandestino, em cada folha escondida, em cada recusa de submissão, fez-se Abril, muito antes da revolução, e é assim que há projetos que não nascem apenas da vontade de criar, mas da urgência de lembrar. "Anónimos de Abril" é um desses gestos raros que nos tocam mais fundo do que esperávamos. Não é apenas um espetáculo, nem um disco, nem um livro. É uma promessa: a de que nenhuma liberdade pode existir de verdade se se esquecer quem a tornou possível. Anónimos de Abril, vem abrindo janelas fechadas há muito tempo, devolvendo nomes, rostos e histórias a um país que ainda precisa de se reconhecer nos seus verdadeiros heróis.
Fotografia: Google
Neste trabalho, a música e as palavras, são mais do que som e letras impressas: são ponte, são evocação, são gratidão. Cada nota e cada palavra, traz consigo o murmúrio de quem lutou na sombra, de quem se manteve firme quando o medo era regra imposta. As canções não são hinos, são sussurros persistentes. Falam-nos de vidas reais que nunca pediram aplausos, mas merecem ser escutadas com o coração inteiro. Celeste Caeiro, Aurora Rodrigues, Padre Alberto Neto, Herculana Carvalho, Luíz Carvalho, Albina Fernandes, Branca Carvalho, Francisco de Sousa Mendes, entre outros, são nomes concretos e dão rosto ao universal. E ouvimo-los não como figuras distantes, mas como ecos daquilo que poderíamos ter sido. Ou daquilo que ainda podemos ser, se tivermos coragem.
Fotografia: Anónimos de Abril
O espetáculo emociona porque é íntimo. Não se trata de encenar o passado, mas de habitá-lo por instantes e de o atravessar pela música, pela palavra e pela imagem. José Fialho Gouveia conduz-nos com sobriedade e verdade, como quem carrega histórias que não lhe pertencem, mas que, por um momento, faz chegar a todos nós. E quando Rogério Charraz e Joana Alegre, tomam conta da sala, há um silêncio raro, um respeito solene, como se cada acorde dissesse: "Escuta. Isto aconteceu. E ainda vive em ti."
O disco prolonga esse sentimento. Não é um registo apenas técnico ou artístico: é um relicário. É como se, ao ouvir aquelas faixas, abríssemos uma janela para dentro da memória coletiva. Uma memória que pulsa, que chora, que resiste. O livro, por sua vez, faz-nos companhia. Traz palavras e ilustrações que aquecem e nos aproximam. Cada página é uma vela acesa diante de uma ausência. Cada QR code, um caminho para reencontrar quem nunca devia ter sido perdido.
Ilustração: Marta Nunes (@martanunesilustra)
Mas talvez o mais bonito de "Anónimos de Abril" seja a forma como nos obriga a olhar para dentro. A perguntar: o que teria eu feito? Onde estaria eu nesse tempo de censura e repressão? A obra não nos dá respostas. Dá-nos inquietações. E é isso que a torna viva. Não é um museu. É um espelho.
Ao chegar às escolas, às cidades do país e às casas de quem o ouve e lê, "Anónimos de Abril" não se limita a informar. Forma. Constrói. Faz lembrar que a democracia não é um bem garantido, mas uma construção contínua, sobretudo nestes momentos conturbados para o mundo e para as democracias, que se dizem plenas que conhecemos. E que cada gesto de memória é já um gesto de resistência, aqui este gesto é permanente.
Mais do que homenagear o passado, este projeto devolve-nos ao presente com mais consciência. E talvez, ao final de cada leitura, de cada música, de cada silêncio escutado no escuro da sala de espetáculos, fiquemos a saber algo essencial: que Abril também se faz hoje. Que há liberdade enquanto houver memória. Que nenhuma canção se perde se for cantada de verdade.
"Anónimos de Abril" não nos fala apenas dos outros. Fala de nós. E convida-nos, com delicadeza e força, a nunca deixar de escutar.