Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor
Nos últimos meses, a política migratória portuguesa tem sofrido alterações significativas. Novos critérios para a concessão de vistos, mudanças na Lei da Nacionalidade, reforço de exigências documentais e o anúncio de deportações em larga escala são medidas que apontam para um redesenho do regime de acolhimento e permanência em território nacional. Algumas destas decisões têm fundamento político e legal. Outras respondem à crescente pressão da realidade. Mas há um princípio que continua ausente do debate público: antes de legislar, é indispensável avaliar se os serviços do Estado têm capacidade para executar o que se aprova em Conselho de Ministros.
A Direção-Geral da Administração da Justiça (DGACCP), por exemplo, viu-se, no início deste ano, sobrecarregada com pedidos urgentes de registo criminal por parte de imigrantes a quem foram exigidos novos documentos para completar os seus processos. Resultado: filas durante horas, dezenas de pessoas a acampar à porta das instalações, funcionários sob pressão e um ambiente de total imprevisibilidade.
Situação semelhante se viveu — e continua a viver — nas conservatórias de registos. Com a entrada em vigor das novas regras da nacionalidade, e o prazo-limite para beneficiar do regime anterior, centenas de pessoas passaram dias e noites nas filas para garantir que entregavam o seu processo a tempo. Estima-se que existam atualmente mais de 700 mil pedidos pendentes, com os serviços de registo a trabalharem no limite da sua capacidade, e muitos sem o número suficiente de funcionários especializados para responder a esta sobrecarga.
A estas dificuldades acresce um novo dado: o Governo anunciou, por via do Ministério da Presidência e da Administração Interna, a intenção de identificar e deportar cerca de 40 mil imigrantes em situação irregular. A medida, que levanta legítimas questões jurídicas e operacionais, não foi acompanhada de qualquer explicação sobre os meios humanos, logísticos ou diplomáticos que o Estado dispõe para a concretizar. Em que prazos? Com que recursos? Em articulação com que países de origem? Até agora, apenas o silêncio.
Este tipo de abordagem cria um desfasamento perigoso entre a decisão política e a realidade administrativa. Os serviços do Estado, já fragilizados por anos de suborçamentação e falta de pessoal, não podem ser constantemente surpreendidos por medidas que implicam uma reformulação completa dos procedimentos sem preparação prévia.
A criação da AIMA (Agência para a Imigração e Mobilidade) devia ter respondido a esta urgência de reorganização. Mas os constrangimentos informáticos, a escassa articulação com os serviços de registo e justiça, e a ausência de formação adequada colocaram em evidência os limites de uma mudança anunciada antes de ser construída.
O problema não reside, necessariamente, nas metas políticas. Reside na ausência de um planeamento consequente. Antes de legislar, é necessário perguntar: os serviços que vão executar estas normas estão preparados? Têm os meios humanos? Têm formação adequada? Dispõem de sistemas compatíveis? Conhecem a dimensão real do impacto?
Trata-se, no fundo, de um princípio básico de bom governo: a responsabilidade legislativa não termina com a publicação de um diploma. Começa aí. Sem meios, sem previsão, sem articulação, a melhor das intenções transforma-se numa fonte de frustração social e institucional. E quando o cidadão se depara com a lentidão do atendimento, com o silêncio dos serviços, com a duplicação de procedimentos ou com a falta de respostas, não culpa o funcionário que o atende: culpa o Estado — e com razão.
Governar não é apenas decidir. É garantir que há estrutura para cumprir. O que temos visto é, por vezes, o contrário: decide-se primeiro e só depois se avalia o impacto — quando já é tarde.
É por isso que vale a pena recordar: quem faz a lei, que conheça os serviços e a fila. Não por demagogia. Mas para compreender que, sem reforço técnico, sem formação, sem planeamento e sem respeito pela capacidade dos serviços, não há política migratória, por mais bem-intencionada que seja, que consiga produzir justiça, integração ou eficácia.