Acórdão permite ao Fisco recuperar IVA e pode parar obras, pressionando mais os preços e a oferta de casas, avisa o setor.
Uma recente decisão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) veio redefinir o enquadramento legal da aplicação da taxa reduzida de 6% de IVA às empreitadas de reabilitação urbana, com potenciais repercussões no setor da construção e do imobiliário. O acórdão, datado de 26 de março, uniformiza jurisprudência e vincula todos os tribunais administrativos, reforçando a posição da Autoridade Tributária (AT) e abrindo a porta à revisão de processos antigos com IVA aplicado à taxa reduzida. Afinal, o que está em causa? Quais as consequências para o mercado imobiliário, a nível da oferta e preços das casas, nomeadamente?
Esta decisão, através da qual o Fisco ganha poder para rever o IVA na reabilitação urbana, marca o início de um período de incerteza jurídica, aumento de custos e maior litigância com a AT, e colocando pressão adicional sobre um setor que já enfrenta várias dificuldades. Para os consumidores, poderá traduzir-se mesmo num aumento ainda mais acentuado do preço da habitação, segundo os especialistas de mercado ouvidos pelo idealista/news.
 
Acordão do STA: o que diz o novo entendimento jurídico
Até aqui, muitas empreitadas beneficiavam da taxa reduzida de IVA com base na sua localização em Áreas de Reabilitação Urbana (ARU). Contudo, o STA vem agora clarificar que essa localização, por si só, não é suficiente. Para beneficiar da taxa de 6%, as obras têm de estar integradas numa ARU com Operação de Reabilitação Urbana (ORU) aprovada, ou seja, é necessário um plano formal e aprovado que enquadre a intervenção.
Este novo entendimento legitima a AT a retroceder até quatro anos – o prazo máximo legal para a caducidade do direito à liquidação – e a exigir a diferença entre a taxa de 6% e a taxa normal de 23%, sempre que considere que a taxa reduzida foi indevidamente aplicada.
 
Solange Dias Nóbrega, Associada Coordenadora na Morais Leitão (MLGTS), explica ao idealista/news que esta decisão já está a ter efeitos práticos imediatos e relevantes. Processos ainda pendentes nos tribunais administrativos ou arbitrais poderão, muito provavelmente, vir a ser decididos em sentido desfavorável aos contribuintes, mesmo que os juízes discordem do novo entendimento. E a força uniformizadora do acórdão do STA torna difícil contrariar esta linha interpretativa.
“Estão em curso vários processos que acabarão por ser decididos em sentido desfavorável aos contribuintes. Os juízes dos tribunais administrativos e fiscais ou os árbitros do tribunal arbitral, ainda que discordem do sentido da jurisprudência do STA, acolhem-na tendencialmente; apesar de não ser obrigatório adotar a jurisprudência uniformizada do STA, caso o tribunal não a perfilhe, a AT poderá sempre recorrer dessa decisão junto do STA que, em sede de recurso, fará vingar o sentido deste acórdão uniformizador e revogará as decisões que a contrariem”, refere.
Por outro lado, a AT tem vindo a abrir inspeções focadas na reabilitação urbana e deverá intensificar essa atuação, exigindo retroativamente o pagamento de IVA em falta. Contudo, processos arbitrais já transitados em julgado não poderão ser reabertos, de acordo com a especialista jurídica.
Solange Dias Nóbrega adianta que a AT “pode inspecionar o IVA dos sujeitos passivos dos últimos quatro anos” e que, neste setor, o Fisco “já abriu várias inspeções para averiguar qual a taxa de IVA praticada em empreitadas de reabilitações urbanas e, por força deste acórdão, continuará a perseguir esta correção”.
 
 
“Quanto aos processos arbitrais que já se encontram findos (ie., que transitaram em julgado) em sentido favorável ao contribuinte, a AT não conseguirá reabrir esses processos com fundamento neste acórdão agora proferido e alterar o sentido dessas decisões já transitadas”, acrescenta.
A responsável admite que existe alguma margem para recorrer contra decisões da AT que exijam a devolução do IVA reduzido aplicado indevidamente, mas tudo depende da “empreitada de reabilitação urbana que, em concreto, foi promovida”.
Uma ameaça à construção de habitação acessível, avisam promotores
Para o presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), Hugo Santos Ferreira, esta decisão representa uma “estrondosa derrota, mais do que para o setor, para as famílias portuguesas e para todos os cidadãos que hoje procuram uma casa que possam pagar”.
A APPII sublinha que esta nova interpretação coloca em causa a maioria das decisões anteriores do CAAD (Centro de Arbitragem Administrativa), que vinham sustentando a aplicação da taxa reduzida apenas com base na localização em ARU, sem necessidade de ORU. Para a associação, o novo critério compromete a viabilidade de inúmeros projetos habitacionais.
“A decisão surge num contexto em que a maioria das decisões do CAAD vinham sustentando um entendimento contrário ao agora defendido pelo STA, isto é, no sentido de que, para a aplicação da taxa reduzida de IVA a empreitadas de reabilitação urbana, nos termos da norma fiscal aplicável (a verba 2.23 da lista I do Código do IVA), bastaria que a empreitada fosse localizada em Área de Reabilitação Urbana (ARU)”, refere Hugo Santos Ferreira.
No entendimento da APPII, esta seria a “interpretação mais alinhada com o espírito não só da legislação fiscal, mas também das regras em matéria de reabilitação urbana, que de facto permitem que a definição de uma ARU não seja necessária e simultaneamente acompanhada da aprovação da respetiva Operação de Reabilitação Urbana (ORU), sem que isso deva desqualificar aquela de todos os incentivos financeiros e fiscais que a própria lei prevê”.
 
Os impactos práticos desta decisão, garante, “são claros e muito pesados”, não só para a indústria, mas sobretudo para quem procura uma casa, de acordo com o responsável. Hugo Santos Ferreira alerta ainda para o risco de insolvência de promotores que assumiram financiamentos com base na aplicação da taxa de 6%, e para a provável desistência de projetos futuros, com destaque para empreitadas que não estejam abrangidas por uma ORU. 
“Por um lado, sabemos de litígios em curso no tribunal arbitral e em que a AT veio já invocar o acórdão do STA com o objetivo de colocar um fim à discussão e que poderão efetivamente levar a que se consolide a aplicação da taxa de IVA de 23% sobre a totalidade da empreitada. Para os casos em que os projetos tenham sido financiados no pressuposto contrário, isto pode levar à insolvência de um número significativo de promotores. Por outro lado, abre a porta a que a AT inicie ações inspetivas a projetos já concluídos em que tenha sido aplicada a taxa reduzida com base numa legítima interpretação da lei fiscal”, argumenta. 
Impacto económico e empreitadas em risco
As empresas que assumiram a aplicação da taxa reduzida podem agora enfrentar liquidações adicionais, que, em alguns casos, podem atingir os 17% de acréscimo sobre o valor da empreitada. Este impacto será sentido tanto em projetos já concluídos, como em obras ainda em curso ou a iniciar.
“O impacto será sentido quer em relação a empreitadas de reabilitação urbana já concluídos quer em empreitadas de reabilitação urbana em desenvolvimento ou a desenvolver. E o setor afetado será aquele em que o IVA não é dedutível como é o da habitação”, salienta Solange Dias Nóbrega.
 
No que respeita aos projetos de reabilitação urbana já concluídas, "as empresas que desenvolveram essas empreitadas terão de enfrentar liquidações adicionais de IVA pela diferença entre o IVA à taxa geral e o IVA taxa reduzida (23%-6%) e poderá determinar um aumento de preço noutros projetos para compensar esse custo (os 17% do IVA)”, explica a especialista jurídica. 
Além disso, garante, o impacto será sentido também em empreitadas de reabilitação urbana em curso ou a iniciar e “que ainda estejam abrangidas pela Verba 2.23 da Lista I do Código do IVA na redação vigente até outubro de 2023 (entrada em vigor do Programa Mais Habitação aprovado pela Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro)”.
“Por força da disposição transitória inserta no Programa Mais Habitação, a Verba 2.23, na redação anterior àquele diploma, mantém-se aplicável a empreitadas promovidas ao abrigo de pedidos de licenciamento, de comunicação prévia ou pedido de informação prévia respeitantes a operações urbanísticas submetidos antes da data da entrada em vigor do Programa Mais Habitação, ou a pedidos de licenciamento ou de comunicação prévia submetidas após a entrada em vigor do Programa Mais Habitação, desde que submetidas ao abrigo de uma informação prévia favorável em vigor”, indica.
 
Solange Dias Nóbrega não tem dúvidas de que “todas as empresas que projetam um preço nas suas empreitadas de reabilitação urbana assumindo a aplicação da taxa de IVA reduzida irão ponderar seriamente a revisão do preço de venda dos imóveis para acomodar o custo acrescido do IVA (17%)”.
Setor sob pressão e casas mais caras 
Para além das consequências diretas sobre a tesouraria das empresas e os custos das empreitadas, a decisão do STA introduz um novo fator de insegurança no investimento imobiliário, particularmente num momento em que se procura acelerar a construção de habitação para fazer face à crise do setor.
Hugo Santos Ferreira lembra que, num momento em que “a construção de mais casas é mais importante do que nunca, dada a pressão que existe no preço da habitação”, esta decisão “vai sem dúvida colocar um constrangimento adicional aos promotores e principalmente aos que se têm vindo a focar num segmento de construção de casas que efetivamente as famílias portuguesas possam pagar”.
Acima de tudo, diz o responsável, esta decisão vem colocar uma pressão adicional nos projetos residenciais ainda por iniciar (e que pudessem enquadrar-se no âmbito de aplicação da taxa reduzida), “na medida em que agrava de forma muito significativa (nos tais 17 pontos percentuais) o preço da empreitada, já de si agravado em virtude da escassez de mão de obra ou do aumento do preço de certos materiais”. 
 
Para o presidente da APPII, as “opções de quem quer promover e construir mais casas são muito simples: ou reflete este aumento do custo da construção no preço final das casas, por forma a que os projetos sejam financeiramente viáveis ou pura e simplesmente desiste do projeto por concluir que não existem condições para o desenvolvimento das habitações a valores que, por um lado, sejam adequados às possibilidades das famílias para as quais o projeto estava direcionado, mas que, por outro, permitam cobrir os custos do respetivo desenvolvimento”.
“Temos conhecimento de projetos para a construção de 400, 500, 600 fogos, dirigidos à classe média, que ficaram por executar precisamente pela incerteza, agora resolvida, quanto à taxa de IVA a aplicar, principalmente nos casos em que a possibilidade de aplicação da taxa de IVA de 23% retiraria a viabilidade financeira do projeto”, frisa o responsável.
A decisão poderá ainda fomentar uma discriminação geográfica dos investimentos, favorecendo zonas onde já exista ORU aprovada, o que levanta desafios adicionais dado que esses processos dependem da vontade e agilidade dos municípios – nem sempre alinhada com a urgência do mercado.
Segundo o porta-voz dos promotores, “poderemos também assistir a uma seletividade acrescida quanto à localização dos projetos para as áreas em que exista ou esteja em vias de aprovação uma ORU, naturalmente limitada à disponibilidade de terrenos e infraestrutura para o efeito, bem como a uma disponibilidade acrescida dos municípios em criar ou acelerar os processos constitutivos destas ORU”.
 
“Mas todos sabemos que estes processos são muito burocráticos, morosos e muitas vezes politicamente desafiantes, pelo que, apesar de desejável, não é expectável que haja um movimento significativo por parte dos municípios”, destaca.
Solange Dias Nóbrega não tem dúvidas de que as novas regras poderão ter repercussões no preço final pago pelos consumidores no mercado de habitação. “Naquelas empreitadas em que era expectável aplicar a taxa reduzida de IVA, os preços de venda dos imóveis serão revistos para mais na minha perspetiva. Havendo mais procura do que oferta, como é o caso atualmente, esse aumento pode verificar-se efetivamente”, frisa.
 
Idealista News