A 14 de março, Sofia Trindade Sota e Sílvia Pereira juntaram-se para resgatar refugiados ucranianos. Hoje, no dia que se assinalam quatro meses de guerra, contamos esta história.

Assinala-se hoje o quarto mês de guerra na Ucrânia. A ofensiva militar foi lançada a 24 de fevereiro pela Rússia na Ucrânia e já matou 4.662 civis, de acordo com últimos dados da ONU, que sublinha que os números reais poderão ser muito superiores.

Este conflito levou ainda à fuga de mais de 15 milhões de pessoas de suas casas, 7,7 milhões das quais para os países vizinhos.

A Guerra da Ucrânia chega todos os dias a Portugal através de diversos órgãos de comunicação social, desinquietando quem está no conforto de um lar, numa mesa de refeições e junto à sua família. Por cá, damos valor ao que sempre tivemos (lembrando que nem todos têm), mas foi tirado a milhares. A união do povo, sobretudo do algarvio, tem-se destacado.

A sensação de impotência é minimizada com dezenas de iniciativas que se fazem em Portugal. Nestes quatro meses de guerra na Ucrânia, falamos da viagem de Sofia Trindade Sota (que vive em Faro há mais de 20 anos) e da sua amiga Sílvia Pereira (natural de Moncarapacho). «Quando o conflito na Ucrânia começou, foi um choque para mim, como acredito que tenha sido para a grande maioria das pessoas. A chegada das primeiras imagens do horror que se vive lá foi como um ‘soco no estômago’», admite Sofia.

Foi no início de março que Sofia tomou conhecimento de particulares e associações que se juntavam e viajavam até à Ucrânia para levar bens essenciais para as zonas mais afetadas pela guerra ou para ajudar os milhares de refugiados que se começavam a juntar nas fronteiras com a Ucrânia. «Visto que já tinha férias marcadas para meados de março, tentei perceber se seria viável, mas acima de tudo necessário, levar a cabo esta ação. Ou tentava fazer algo útil ou ficava em casa a ver todo este drama no conforto do sofá».

Ao nosso jornal, Sofia Trindade Sota conta que «decidi, em conjunto com uma amiga, entrar em contacto com algumas associações como a DOINA e a #wehelpukraine e perceber de que forma poderíamos ajudar». O primeiro passo, explica, seria «percebemos se conseguiríamos uma carrinha de 9 lugares para fazer a viagem. Esta tarefa mostrou-se muito complicada, pois mesmo tentando falar com associações de solidariedade social e clubes, não estávamos a conseguir».

Foi através da Fundação Viscondes de Messangil, em Pias (Serpa), que Sofia Trindade Sota e Sílvia Pereira conseguiram a carrinha. Foram vários os locais onde “bateram à porta” para conseguir o transporte que as levasse à Ucrânia. «Eu estava muito nervosa, porque eu tinha apenas uma semana disponível para fazer a viagem, que seria no período das minhas férias», acrescentou.

Ao conseguir a carrinha, Sofia Trindade Sota revela que sentiu «um misto de contentamento e nervosismo». A algarvia de coração acrescenta que «nesse fim de semana fui até lá para ir buscar a carrinha para que dia 14 de março pudéssemos iniciar a nossa aventura. Carregámos a carrinha em S. Brás de Alportel no dia anterior e partimos», recorda ao nosso jornal.

A viagem até à Ucrânia

Ao traçar o plano da viagem, Sofia Trindade Sota percebeu que a melhor forma de a fazer seria em turnos de 4 horas de condução, para que conseguissem descansar depois. «Fizemos a viagem quase de seguida até à Itália, parando apenas para abastecer e para comer. Depois da pausa, seguimos viagem com destino a Siret, na fronteira da Roménia com a Ucrânia, onde chegámos no dia 16 de março», relata.

Sofia Trindade Sota conta que «demoramos, sensivelmente, 48 horas a fazer cerca de 4.000 Km, que separam Faro de Siret».

Numa viagem de longo percurso, são muitos os percalços e, aqui, não foi diferente. «As principais dificuldades desta primeira etapa foram a qualidade das estradas assim que chegámos à Roménia. Não há autoestradas, o que fez com que tivéssemos que dividir estradas nacionais com camiões de carga e isso tornou a última parte da viagem até chegar a Siret muito difícil».

Os desafios e as adversidades, felizmente, foram superados. «Chegámos a Siret e encontrámos as pessoas a quem deveríamos entregar os mantimentos e com quem já tínhamos falado antes, de modo a combinar horas e local de encontro. O nosso contacto em Siret era uma senhora, chamada Vera».

Certamente que Sofia Trindade Sota e Sílvia Pereira não se esquecerão de Vera e do marido. «Ela e o marido podiam estar fora da Ucrânia e dos horrores da guerra há muito tempo, pois tinham mais de 65 anos. Apesar disso, decidiram ficar e ajudar da forma que podiam. Aproveitam o facto de poder sair de território ucraniano para vir ao outro lado da fronteira buscar mantimentos», diz emocionada. «As lágrimas de nervosismo e alegria falaram por nós e os entraves relacionados com a língua ficaram esquecidos», acrescenta Sofia.

 

Emoção à parte, onde estão os pastéis de nata?

Sofia Trindade Sota conta-nos que «com a Vera e o marido veio também um compatriota que, por ter dupla nacionalidade (ucraniana e romena), conseguia passar a fronteira. Ele falava espanhol e perguntou-nos automaticamente se não lhe tínhamos levado pastéis de nata». O clássico português não foi esquecido, mesmo em tempos de guerra- talvez nos falte mais açúcar, para sermos melhores pessoas…

«Despedimo-nos deles com a promessa que nos iríamos encontrar um dia, provavelmente aqui em Portugal para beber licor e festejar o final da guerra», sublinhou Sofia, que aguarda ansiosamente esse dia, assim como milhares de pessoas.

De Siret a Bucareste

«A primeira parte da nossa missão estava cumprida! Íamos seguir até Bucareste, a 500 km de distância de Siret, para no dia seguinte encontrarmos os refugiados que traríamos para Portugal», conta a algarvia. «A forma de condução na Roménia foi, sem dúvida, um desafio para nós. A falta de autoestradas torna as estradas nacionais bastante perigosas e fez com que a atenção tivesse de ser redobrada», relata.

No dia seguinte, Sofia e Sílvia foram ao encontro dos refugiados. «Primeiro, na estação de autocarros em Bucareste, encontrámos a Svetlana e a irmã. Duas jovens na casa dos 20 anos, originárias de Odessa, que tinham chegado da Moldova. Simpáticas, afáveis e visivelmente entusiasmadas com a viagem», explica. «Depois, seguimos para um abrigo de refugiados em Bucareste onde já nos esperavam a Inna, os dois filhos, de 12 e 14 anos, e a sogra Tamara. Com eles vinha também a Kate, a cadelinha chihuahua da família. Tudo a postos para o início da viagem de regresso!», acrescenta entusiasmada.

«As primeiras horas de viagem foram bastante tranquilas, até chegarmos à fronteira da Hungria, onde encontrámos uma fila muito grande que nos roubou cerca

de 4 horas. Depois, passado mais algum tempo no controlo de passaportes, onde foram verificados todos os detalhes, seguimos caminho. Durante o percurso houve alguns percalços. Algumas indisposições fizeram com que a viagem de volta tivesse muito mais paragens. Tentámos ao máximo confortar as pessoas. Optámos por, já em Espanha, pernoitar num hotel e seguimos viagem no dia seguinte. Foi uma noite revigorante para todos e, com o destino final cada vez mais próximo, a expectativa foi aumentando», diz Sofia Trindade Sota.

A grande viagem terminou no dia 19 de março e foram resgatadas seis pessoas. A Svetlana e a irmã ficaram com uma família de acolhimento, em Torres Novas, e a Inna e a família ficaram em Rio de Mouro, em Lisboa, em casa de uma amiga que vive em Portugal há muitos anos. «Temos tentado manter contacto com elas para saber como se estão a adaptar a Portugal. Já nos prometeram visita e vamos adorar recebe-los cá assim que seja possível», diz entusiasmada.

O apoio da comunidade

«Esta viagem só foi possível porque tivemos muitas ajudas. A começar pela Fundação Viscondes de Messagil, que nos disponibilizou a carrinha, passando pelos nossos amigos e familiares que nos foram fazendo doações, bem como as dezenas de pessoas que não conhecemos, mas que ao saberem desta nossa missão decidiram juntar-se a nós e ajudarem como podiam», acrescenta Sofia, que enaltece em especial o povo algarvio. A Associação DOINA foi também importante durante todo o processo por apoiar e encaminhar as algarvias na angariação de contactos.

Para Sofia e Sílvia, «foi uma aventura física e emocionalmente esgotante. Foram vários os ‘murros no estômago’ ao longo da viagem. Perceber que a bagagem que alguns deles tinham era apenas um saco de plástico é devastador. Perceber a ansiedade deles por deixarem familiares e amigos para trás é de 'partir o coração'. Sabemos que fizemos o que estava correto e agora só esperamos que as pessoas que ajudámos possam ter aqui em Portugal uma nova esperança».

Para os algarvios, Sofia Trindade Sota e Pereira deixam a seguinte mensagem: «Muitas pessoas acham que estes tipos de iniciativas são inalcançáveis e não são. Eu voltaria a fazer a viagem. O cansaço e o desgaste são esquecidos quando comparados com a alegria de saber que fomos úteis».

A guerra continua e assinala-se hoje o quarto mês desde ofensiva militar pela Rússia na Ucrânia. Iniciativas como esta, têm salvo a vida a milhares de pessoas. Para quem as pratica, fica o sentimento de dever cumprido.

 

Por: Filipe Vilhena