Por F. Inez

Longe vão os tempos em que a tão badalada e simpática figura do João Semana … figura literária imortalizada pelo saudoso Júlio Diniz no seu Romance “As Pupilas do Senhor Reitor”… personalizava a figura do médico da aldeia do último quartel do século XIX  e ainda  da primeira metade do século passado … que percorria montes e vales, fosse debaixo do Sol ardente, fosse a altas horas da noite, quantas vezes com um frio de rachar ou enfrentando terríveis tempestades … lá ia ele com as suas poções milagrosas, aliviar padecimentos e maleitas, arrancando das garras e angústia do sofrimento, quantas vezes da morte certa, os seus pacientes … e a sua presença era já meia cura! 100 anos depois, João Semana passou à História e hoje, na Medicina moderna, a Arte de curar a doença daqueles tempos ancestrais tem vindo progressivamente a dar o lugar à Ciência.

Todavia, o sofrimento do ser humano, desde sempre o tornou frágil e vulnerável. Muito para alem da Ciência, por maior que seja o tecnicismo que nos rodeia, nas horas difíceis … prevalece a Arte … só o calor humano … a mão no ombro … e a palavra amiga … nos pode reconfortar e trazer de volta a esperança perdida … ainda que tantas vezes de forma ilusória! Lamentavelmente, desde o dia em que na relação médico-doente se intrometeu um terceiro elemento … o Estado - os seguros, os chamados subsistemas de saúde e outros – estes vieram contaminar e enfraquecer aquela relação, ao introduzir restrições e contingências redutoras no acesso e na qualidade dos cuidados a prestar aos doentes.

Quanto maior o tecnicismo, maiores serão os seus custos … e inevitavelmente as restrições que irão surgir da entidade pagadora … o que nos leva a admitir e a recear que o acesso aos cuidados de saúde e a relação médico-doente se irão continuando a degradar dando lugar a uma progressiva e cada vez maior e inevitável desumanização da prática médica! Mas … como sempre na vida …  não há bela sem senão …. a componente romântica daquela fase da Medicina não obstante a generosidade dos médicos de então, deixava frequentemente de fora uma grande parte da população portuguesa … a que não dispunha de condições financeiras para pagar o médico e a farmácia! Por me parecer pertinente … e porque ainda vivi profissionalmente os últimos anos desta esta última fase idílica da Medicina …  pela primeira vez, em mais de 20 anos das minhas crónicas, a título de exemplo no âmbito da assistência médica, do que então se passava, atrevo-me a falar de mim próprio … é que vem a propósito referir que ao longo de mais de quatro dezenas de anos, pelo menos a uma terça parte dos cuidados prestados aos então meus doentinhos … nada cobrei de honorários … e frequentemente, sempre que possível, lhes oferecia os medicamentos que nos eram proporcionados pelos Laboratórios como amostras clínicas.

A outra terça parte reduzia o mais possível aqueles honorários … e finalmente à terça parte restante … a mais abonada financeiramente … respeitei a tabela então em vigor. Não posso deixar de referir que ainda hoje me regozijo e sinto uma enorme satisfação ao recordar esta minha postura profissional!Sem prejuízo de algumas tímidas Reformas que criaram os IANT … para assistência aos tuberculosos e os Centros de Saúde de 1ª geração para apoiar a saúde infantil e a gravidez, foi a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) pelo célebre despacho Arnaut, um dos momentos mais importantes da nossa Democracia e das chamadas conquistas de Abril! Nos últimos 40 anos foi gerando ganhos de saúde que colocou Portugal num lugar cimeiro e manteve-o entre os países da OCDE com maior esperança de vida.

Lamentavelmente, hoje, 43 anos depois, o Estado deixou de considerar a saúde uma prioridade dos portugueses … daí que o SNS venha atravessando uma situação muito crítica, com encerramento de serviços de urgência e tempos de espera para consultas, exames e cirurgias de meses e até anos … e continua a ignorar os alertas dos seus profissionais, incentivando a sua fuga para o setor privado ou para o estrangeiro.

De acordo com a OMS o limite de esforço do agregado familiar com as despesas em saúde não deve ultrapassar os 15% … e nós já ultrapassamos os 30%. Portugal ainda é o 3º país de entre os 38 da OCDE com maior número de médicos por mil habitantes (5,3) muito acima da média dos 3,8. Quanto mais doentes acorrerem à medicina privada, menor será a despesa do Estado. Mas … longe de constituir uma despesa os gastos em saúde com os portugueses constituem um investimento para o progresso do País e do bem-estar da nossa população. Vai sendo tempo dos governantes abrirem mão da obsessão das “contas certas” e decidir que tipo de SNS os governantes querem para Portugal.