Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor

Samora Machel era médico. Escolheu a medicina como quem escolhe servir. Mas a vida, e a História, levaram-no a uma missão mais vasta: liderar a libertação de Moçambique do domínio colonial português e fundar uma nação independente. Presidente da República Popular de Moçambique desde a independência em 1975 até à sua morte, tornou-se um símbolo da autodeterminação africana, uma figura carismática, austera, profundamente amada pelo seu povo.

Em Portugal, porém, durante anos, Samora Machel foi, para muitos, apenas uma figura de anedota. Literalmente. Nos pátios das escolas, nas noites das famílias retornadas, nas conversas de taberna e até nos programas de rádio mais ou menos clandestinos, contavam-se anedotas sobre Samora. Eram piadas breves, de construção tosca, muitas vezes de conteúdo racista e xenófobo, que representavam o líder moçambicano como ingénuo, ignorante ou ridículo. Essas piadas faziam rir quem as contava, sem perceber que por trás do riso havia uma ferida mal curada. A perda do império, o regresso forçado dos retornados, o ressentimento surdo da descolonização.

Não se riam apenas de Samora Machel. Riam do povo que o seguia. Riam de um continente que ousava ser soberano. Riam de um país que nascera pobre, mas livre. E, sobretudo, riam para não encarar a responsabilidade histórica de um colonialismo longo, violento e desumano. A figura de Samora foi, nesses anos, reduzida a uma caricatura grotesca, como se o humor servisse de catarse a uma culpa coletiva nunca enfrentada.

O episódio mais revelador do desconforto português com a figura de Samora Machel talvez tenha ocorrido em 1981, quando o então Presidente da República, Ramalho Eanes, visitou Moçambique. Durante essa visita oficial, Samora não se conteve e criticou duramente a política portuguesa, o estado da sua economia e a forma como o país tratava os africanos. Fê-lo num tom direto, frontal, sem cerimónia. A resposta de Eanes foi diplomática, mas o mal-estar ficou evidente. O episódio não teve consequências formais, mas reforçou a imagem, em certos círculos portugueses, de que Samora era hostil e ingrato. E as anedotas, em vez de desaparecerem, multiplicaram-se.

É importante lembrar que, na maioria dos casos, quem repetia essas piadas eram crianças que não sabiam quem era verdadeiramente Samora Machel. Mas isso não iliba a cultura que as gerou nem os adultos que as incentivaram. Aquilo que para nós era uma graça sem malícia era, para os moçambicanos, um insulto à sua memória coletiva. Portugal, nessa época, riu-se de quem acabara de conquistar o direito de não ser súbdito. Riu-se de um povo inteiro. E, por esse motivo, o humor português foi injusto, não apenas com um homem, mas com uma nação.

Esta semana, soube-se que alguns humoristas portugueses não foram convidados a atuar em Moçambique. O espanto que isso causou em alguns setores em Portugal é revelador. Revelador de uma certa amnésia, de uma certa ideia de que tudo é aceitável em nome do humor. Como se o passado não deixasse marcas. Como se a memória de um povo fosse um obstáculo à liberdade de expressão e não precisamente aquilo que a protege.

No recente julgamento da humorista Joana Marques, a juíza sentenciou, sem hesitação: “No humor, nada é sagrado.” A frase, repetida com entusiasmo por comentadores e fãs do humor, revela bem o estado de espírito dominante em Portugal. Mas talvez devesse ser completada: “No humor, nada é sagrado — nem mesmo a dignidade dos outros.” Porque quando se abdica de qualquer limite, não se está a alargar a liberdade, mas a esvaziar a responsabilidade.

Hoje fala-se muito de linhas vermelhas, de censura, de liberdade. Mas há silêncios que não são censura. São decência. E há memórias que não se apagam com piadas. Quando Portugal ridicularizou Samora Machel, não o fez por conhecer o seu pensamento, a sua obra ou os seus discursos. Fê-lo porque precisava de alguém em quem projetar a sua própria frustração. Fê-lo para não reconhecer o mérito de quem o enfrentou de igual para igual.

Pior ainda, o humor que em tempos serviu para humilhar Samora Machel parece hoje estar a ser usado para descredibilizar a própria democracia. Expressões como “Isto é gozar com quem trabalha” ou “Isto anda tudo a gamar”, repetidas em segmentos humorísticos e amplificadas nas redes sociais, criam uma percepção permanente de farsa, de que nada é sério, de que tudo está corrompido. O humor, nesse registo, cava a mesma cova em que a extrema-direita deseja enterrar a democracia — deslegitimando o regime, ridicularizando as instituições, lançando o descrédito como se fosse inteligência.

O humor pode ser uma forma sublime de inteligência. Mas também pode ser um instrumento de injustiça, quando se limita a perpetuar estereótipos e a humilhar os mais vulneráveis. Neste caso, não foi apenas Samora Machel que foi injustiçado. Foi todo um povo, no preciso momento em que tentava erguer-se dos escombros da história.

A liberdade de rir existe. Mas a liberdade de lembrar também. E Moçambique, esta semana, lembrou-nos disso com a dignidade de quem sabe o preço que pagou por ser livre.