É de toda a justiça, trazer para o palco da memória, um grande ser humano, que faz da medicina e da arte, todo o seu mundo
Francisco José Correia Andrade de Sousa, nasceu em Loulé no dia 06 de julho de 1955. Médico Pediatra de profissão, tem na escultura uma das suas atividades preferidas. Sem qualquer formação artística, diverte-se trabalhando o barro (ou qualquer massa moldável) e a madeira.
Existem pessoas que fazem da vida um embuste, e outras, como o meu amigo Chico Zé, isto é, o Dr. Francisco José, que hoje chamo às páginas d’A Voz de Loulé, que fazem da vida um busto. Um busto com alma, que fala, que não mente, que não engana, que é um ser humano, que só não pensa em voz alta, para que não escutem todas as verdades.
Também se somam uns aos outros, não sei quantas vezes, num número incontável, os que se alimentam do embuste, deste incrível comportamento, que até enterra os alicerces, para que não nos possamos reerguer.
Enganam-se os que pensam que isto é um jogo de palavras, um pensamento fingidor como escreve Pessoa: «O poeta é um fingidor, Finge tão completamente, Que chega a fingir que é dor, A dor que deveras sente.»
Já se passaram muitos anos, desde o dia em que o Dr. Francisco José, me foi apresentado, e ficámos depois tão longe outra vez, que nunca mais nos voltámos a reencontrar, até um dia, também distante, que vou procurar, no espaço que tenho, trazer à tona da memória, e vão ver que até vale a pena, sobretudo, para conhecermos um homem, que no contraste da sociedade amolgada em embustes, ele transforma a mesma poeira em bustos, que são memória, mas também são vida.
Foi há muito tempo que Chico Zé, aliás, o Dr. Francisco José me foi apresentado, nem sei, até porque nem tivemos tempo para isso, se criámos alguma empatia. Cuidado que esta «empatia», não vem de empate, vem de vitórias, de encontros e de contos, onde se lê: amizade, respeito e cada um para o seu canto…
Por essa altura, quando fomos apresentados, eu fiz deste momento, uma espécie de começo. Sim! Tudo tem um começo, depois foram os carris da vida, - com linhas milimetricamente separadas, logo transportando carruagens onde assentam dramas, angustias, alegrias e por aí fora - que nos foram aproximando.
Tenho tudo apontado numa sebenta, que ainda não consegui encontrar, mas guardo na minha cabeça todo o letrado escrito, quiçá em páginas mais amarrotadas, que amareladas, por isso, também não conversei com ninguém, que me pudesse clarear pormenores, pelo facto do outro autor desta carambola extraordinária, o saudoso Júlio, o Júlio Guerreiro, que foi quem nos juntou, já há muito nos ter deixado. Tudo aconteceu no século passado.
Nessa ocasião, além do nome, nada mais ficou registado, portanto nada mais de relevante nos alertou para o dia seguinte. Ele era e é Pediatra. Os meus filhos já eram crescidos e eu ainda não tinha netos, logo, não precisava de ir ao pediatra, mas também não o queria perder de vista, o que veio mesmo a acontecer…
- Este é o Dr. Chico Zé – disse-me o Júlio Guerreiro.
A Volta a Portugal tinha chegado a Abrantes, num final de etapa, que terminou num trecho muito seletivo em cima de um alto, mesmo fronteiro ao Hospital de Abrantes.
No final da cerimónia do pódio, e com grande vontade de me ir embora a correr para a sala de imprensa e depois para o hotel, o Júlio Guerreiro, que era tudo na volta e amado como ninguém, olhou para mim e disse-me:
- Neto, anda ali comigo ao hospital falar com um médico meu amigo, que é pediatra e é de Loulé.
Eu sabia que o Júlio «tinha muitas doenças», agora consultar um pediatra, só o Júlio. E como bom escuteiro, lá fui…
- O que é que tens? – perguntei
- Não me sinto lá muito bem.
Manias, pensei eu, pois se a volta tinha duas equipas de médicos, uma carrada de ambulância e enfermeiros. Algumas equipas tinham médicos. Mas pronto, disse, que sim e lá fui. Quem sabe se o Júlio tinha ações do Hospital de Abrantes…
- Oh Neto. Este é o Dr. Chico Zé. É lá de Loulé. Um grande amigo e um grande médico. Pouco depois, ficámos num abraço, que por agora, por culpa da pandemia, está impossível de se renovar.
Depois, nunca mais vi ou ouvi falar do Dr. Chico Zé…
Passados que foram alguns anos, muitos, nasceu o meu neto Guilherme, estávamos em 2007, faz agora, dia 2 de maio, treze anos, e curiosamente ou não, foi o Dr. Chico Zé, que esteve perto dele, em momentos que o tempo levou, mas a memória no lado onde moram os tesouros, guarda com amor e reconhecimento.
Alguns dias depois, nesse mesmo mês de maio voltei a encontrar o Dr. Chico Zé, desta vez num momento doloroso, junto à Igreja de Nossa Senhora dos Pobres de Loulé, por ocasião do falecimento de seu pai, portanto, também já lá vão treze anos.
O tempo correu e a nossa relação cresceu, sempre discreta, como nasceram e cresceram os meus outros netos, agora a última, a Sofia, a que o meu neto Manuel, chama de «Capital da Bulgária» e que são todos «hóspedes» do Dr. Chico Zé.
E nesse caminhar, a nossa amizade foi ficando bem sólida, caldeada e moldada com as mesmas argamassas com que o Dr. Chico Zé, molda e constrói os homens e o mundo…
Outros foram os momentos, sempre esporádicos, quase a correr, em que o meu Pedro, o Toni, mas sobretudo o mestre Gónito, o senhor João Simões, nos aproximaram do Dr. Chico Zé, criando alianças, que me permitem em tese, escrever esta breves linhas, apelando outra vez, para que o Dr. Chico Zé, por minha culpa, não jogue «o barro todo à parede»…Não esquecer que o Chico Zé, foi uma dos bons alunos da escola do Mestre Gónito, envergando por essa altura a camisola dos juniores do Louletano.
A sua obra é espantosa, e não estamos aqui a fazer deslizar aguarelas, que parecem o suor das telas, com coloridos imprevisíveis, antes o correr de várias argamassas, que vão ser modeladas por imaginações vadias, com dedos tornados escopros e mãos acariciadoras de amor, mostrando alguns dos muitos homens que construíram e lutaram por casas agora arrombadas, em que o mundo se tornou.
É esta cumplicidade entre a obra e o artista, que hoje vos trago aqui, ainda que muito longe de todo o seu quase indescritível espólio (em jornalismo não se pode dizer a palavra indescritível) …
Chico Zé, Dr. Francisco José, médico pediatra, tão discreto, como o amor e a paixão que tem por todas as coisas, que nem sabe, que eu, se calhar desrespeitando todos os seus princípios, arrombo esse cordão de eterno silêncio, e sem holofotes, a não ser a simplicidade que cruza e ilumina toda a sua vida, dou à estampa, um pouco da sua magia, construída por mãos milagrosas, as mesmas, que mais de mil vezes, têm acariciado o peito e o choro de mil crianças...
Pois é, mas a vida é feita de momentos, de uma estranha barafunda, onde quando nos imaginamos na solidez desta mesma vida, damos por nós, repito, sentados, ao colo de um velho galinheiro e a barafunda é tão grande, que a moeda com que procuramos o prémio na raspadinha da vida, tem as duas faces iguais, todavia, num contraste supremo a tudo isso, é que descubro, apesar da toda a minha ignorância e esta escrita é mais a letra desenhada pelo coração, o que de maravilhoso e espetacular tem toda a arte de Francisco José. Sim, do Dr. Chico Zé.
Ainda vamos acrescentar mais dois episódios: É o primeiro médico, ainda como interno no Hospital de Faro, que primeiro analisa as radiografias feitas a Joaquim Agostinho, quando da sua queda em Quarteira a 30 de abril, isto foi, há 36 anos.
Depois, não posso deixar de referenciar a maravilhosa escultura que me ofereceu, quando a 14 de outubro de 2016, fui homenageado no Nera, pedindo na altura, ao meu ouvido e num silêncio ruidoso: - Por favor não mostre a ninguém. – Claro que desobedeci.
Pois é, aqui estão, quase sem legendas, mas com um grande abraço de reconhecimento, nesta passarela de paixão que faço desfilar, partes soberbas, da sua magistral obra, com trabalhos criativos, tendo a paixão e arte na ponta dos dedos e no milagre das mãos, onde com poeiras da vida amassadas, procura dar vida a um mundo que vamos perdendo de amor, paixão, liberdade e fé, criados por um homem, que num tempo distante, com mais de 48 anos, estávamos em 1972, venceu um concurso, inspirado em António Aleixo. Quem sabe se esse prémio, passou depois a coabitar com esta quadra do nosso maior poeta popular:
A arte é força imanente,
não se ensina, não se aprende,
não se compra, não se vende,
nasce e morre com a gente.
Toda a sua vida tem sido alimentada pela cultura, pela arte e pelo humanismo. Trata-se de uma personalidade, com um rosto que não chega a esconder o homem, do médico e do homem astuto, que faz da discrição não uma arma, mas a força do seu carácter, que parecendo distante e em silêncio, protesta com a sua arte, com as suas crianças, com a construção de cada novo homem, e de homens ainda por inventar.
Deixem-no estar no sossego nas suas quatro paredes, com os seus silêncios, os seus desencantos, as suas amarguras, as suas paixões e as suas gargalhadas, algumas de desprezo, afinal na sua própria e real escultura.
No outro dia, numa mensagem que me fez chegar, o «meu médico, porque eu tenho muitos momentos em que sou criança», Chico Zé, disse-me:
- “Amigo Neto Gomes, esta é uma das maneiras de resolver o Covid-19, jogar este mundo fora, rebobinar o filme e criar um mundo diferente. Eu posso criar um homem novo, não de carne e osso como é óbvio, pois esse, rapidamente se esqueceria de tudo e tudo voltaria ao mesmo. Cada um tem que fazer o seu papel…”
A verdade é que em cada trabalho, Chico Zé, o Dr. Francisco José mostra uma visão profunda e por vezes nostálgica, mas também feliz, sobre muitos dos acontecimentos que nasceram na incubadora da vida e no entusiasmo de cada um de nós, mas depois quase que nos deixaram órfãos e sem futuro. Tudo isso em contraste com os embustes da sociedade onde nos armazenamos…
De igual modo, Loulé e os louletanos, tendo como bandeira genial, num trabalho verdadeiramente sublime e imaculado, uma imagem de sonho, marcante, incisiva, de amor impossível, sobre a Procissão de Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana, numa homenagem emotiva, arrepiante, aos homens do andor.
Para mim foi uma honra, uma alegria enorme, tanger meia dúzia de linhas, com todos os erros e omissões sobre o Dr. Francisco José e de igual modo expor na Voz de Loulé, alguns dos muitos, importantes e maravilhosos trabalhos realizados por Chico Zé, isto é, pelo Dr. Francisco José.