Por Prof. Doutor José Delgado Alves, Especialista em Medicina Interna e Farmacologia Clínica; Professor de Terapêutica Médica, NOVA Medical School, Lisboa; Diretor do Serviço de Medicina IV e da Unidade de Doenças Imunomediadas Sistémicas, Hospital Fernando Fonseca, Amadora; Coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Autoimunes da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
Quando se pergunta a qualquer grupo de pessoas, independentemente da idade, sexo ou condição social, qual o sintoma, problema de saúde ou complicação de uma qualquer doença que possa vir a ter que mais teme, a resposta é quase sempre: a dor! Mesmo quando confrontados com uma doença fatal, desde a altura do diagnóstico até ao desenlace final, a pergunta é quase universal: irei sofrer? Não quero ter dor!
 
Ironia do destino, a dor pode ser simultaneamente um dos mecanismos mais importantes na preservação do nosso organismo e, quando no contexto de uma doença crónica, um dos maiores factores de sofrimento e consequente perda de qualidade de vida. De facto, frequentemente a dor ultrapassa a condição de sintoma e torna-se ela própria a doença, autónoma e dominadora.
 
Mas a dor, enquanto conceito genérico, encerra em si tudo o que a vida representa: a dor pode ser felicidade no contexto do trabalho de parto, pode ser física num trauma isolado ou numa doença crónica, pode ser desespero e solidão quando enquadrada na doença mental ou num momento de luto. A dor pode ser sentida, sofrida, limitante ou libertadora mas nunca consegue ser adequadamente medida.
 
E por isso é talvez um dos sintomas ou condição mais frequentes que ainda assim se caracteriza por um carácter pessoal, único, não quantificável. A dor é vivida por cada um de forma diferente e ninguém em nenhuma circunstância pode alegar que conhece ou mesmo compreende completamente a dor do outro. A dor é universal mas privada, frequente mas individual!
 
É por tudo isto que se torna impossível abordar a dor como um fenómeno específico, susceptível de se definir de forma simples, de se enquadrar numa classificação linear.
 
Cada clínico procura compreender a dor dos seus doentes em função da especialidade que tem, da ortopedia à neurologia, da oncologia à psiquiatria e cada investigador tenta categorizá-la numa perspectiva bioquímica ou anatómica. Como internista, sou testemunha de quase todas as suas formas e mesmo assim não existe dia em que não seja confrontado com as minhas insuficiências. Não sei qual o número actual de pessoas no mundo que sofrem de dor, mas esse número acaba por ser irrelevante porque qualquer que seja, pecará sempre por defeito.
 
Existem actualmente várias classes farmacológicas disponíveis para o controlo da dor. São dezenas de fármacos, cada um com a sua indicação ou peculiaridade e ainda assim a dor enquanto sintoma é frequentemente mal compreendida e até mal aceite pelos próprios clínicos. Talvez porque seja um sintoma pelo qual mais tarde ou mais cedo todos passamos ou do qual temos memória em alguém próximo ou ainda porque não o podendo confirmar ou quantificar preferimos desvalorizar.
 
E os exemplos repetem-se todos os dias. Confesso que em quase 30 anos de actividade médica ainda me surpreende a leviandade com que frequentemente dizemos «esse tipo de lesão não pode doer tanto!» ou «essa dor é porque está deprimido!» como se a intensidade da dor dependesse daquilo que nós achamos adequado, como se na ausência de uma evidência anatómica a dor sentida fosse menos importante. E o que me parece ainda mais grave é que tendo consciência de tudo isto, também eu próprio me ouço a repetir este tipo de sentenças.
 
É verdade que temos agora consultas de dor com a capacidade de actuar a um nível muito mais elaborado, mas a consciencialização de que a dor tem um carácter social que vai muito além do sintoma ou doença médica ainda está longe de acontecer e mais distante ainda está a capacidade de promover mudanças significativas na prática clínica e na compreensão destes doentes.