O anticlericalismo aparente da «Comissão da Carteira de Jornalista»

20:04 - 11/11/2025 OPINIÃO
Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor

A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tornou-se, ao longo dos anos, um organismo que mais parece fiscalizar convicções do que avaliar práticas. O seu modo de agir revela um viés ideológico que ultrapassa a simples aplicação da lei e que, no caso das publicações de inspiração religiosa, se transforma num obstáculo quase intransponível. Há uma linha invisível que separa o jornalismo reconhecido do jornalismo tolerado, e o religioso tende sempre a cair do lado dos excluídos.

Durante quatro anos, fui diretor e editor da revista “Tempos de Encontros”, publicação católica afetada à Santa Casa da Misericórdia de Guimarães, com periodicidade regular, estrutura editorial estável e uma clara missão informativa e formativa. Solicitei por diversas vezes a carteira profissional de jornalista, apresentando provas do exercício contínuo da atividade, reportagens, editoriais, entrevistas e testemunhos de colaboradores. A resposta foi sempre a mesma: indeferimento. Não por falta de trabalho jornalístico, mas por preconceito quanto à natureza confessional da publicação. Era como se o facto de a revista nascer de uma instituição cristã a tornasse, à partida, incompatível com a definição de jornalismo.

Essa atitude é reveladora de um anticlericalismo institucional, discreto, mas persistente, que ainda se insinua em certas estruturas da comunicação social portuguesa. É o mesmo espírito que confunde fé com proselitismo e confunde independência com ausência de valores. Ora, o jornalismo confessional não é doutrinação, é uma forma legítima de participar no espaço público, iluminando a realidade a partir de uma perspetiva ética e espiritual. Excluí-lo é amputar a pluralidade da comunicação social e reduzir o jornalismo a uma ortodoxia ideológica travestida de neutralidade.

A Constituição da República Portuguesa é explícita: o artigo 37.º garante a liberdade de expressão e de informação, e o artigo 41.º protege a liberdade religiosa e de consciência. Estes direitos não se contradizem, completam-se. Defender a liberdade de expressão enquanto se limita a liberdade religiosa é uma incoerência civilizacional. Quando um organismo público recusa reconhecer o trabalho jornalístico feito em publicações religiosas, está a negar o pluralismo que a democracia deveria cultivar.

Importa lembrar que a Comissão da Carteira de Jornalista não é uma instituição do Estado, mas um organismo público independente, composto essencialmente por representantes da classe. Por essa razão, deveria ter cuidados redobrados na forma como interpreta e aplica as regras, justamente para evitar que o seu poder de reconhecimento se transforme em instrumento de exclusão. A independência que invoca para si mesma exige imparcialidade e sentido de justiça, não alinhamento ideológico.

O jornalismo que nasce da fé é muitas vezes o que mais se aproxima da vida real. Nas misericórdias, nas paróquias, nas instituições de solidariedade, produz-se informação sobre o humano, sobre o social, sobre o invisível. É ali que se denuncia a pobreza, a solidão e a injustiça sem medo de ferir sensibilidades políticas. Ignorar esse trabalho é negar a própria essência do jornalismo, que é dar voz a quem não tem voz.

O que se pede à Comissão da Carteira de Jornalista não é deferência religiosa nem simpatia institucional, é apenas justiça. A laicidade não deve ser arma de exclusão, mas garantia de equidade. A neutralidade do Estado — e também dos organismos que orbitam à sua volta — não consiste em afastar o religioso do espaço público, mas em tratá-lo com a mesma legitimidade que qualquer outro discurso. Só assim a liberdade de imprensa será realmente livre e a democracia verdadeiramente plural.

E quando se observa o modo como este organismo atua, com a sua estrutura mínima de cinco funcionários, longe dos holofotes e sem verdadeiro escrutínio externo, é inevitável questionar se não haverá aqui uma certa discriminação seletiva, que silencia uns e protege outros. Talvez o caso recente de Maria João Avillez, cuja carteira profissional foi discutida com um zelo desproporcionado, revele essa tendência. Talvez ela própria tenha sido, como tantos outros, “cilindrada” por uma comissão que, paradoxalmente, sendo parte da comunicação social, permanece fora da sua luz.