ENTRE O SER E O DEVER SER

10:00 - 19/10/2025 OPINIƃO
Por: Padre Carlos Aquino | effata_37@hotmail.com

“Aumenta a nossa fé”

Na sua forma mais íntima, a fé, sempre foi menos uma doutrina do que um gesto: a mão que se estende no escuro, buscando um ponto de apoio invisível, diremos em linguagem cristã, um mergulhar no Mistério. Na contemporaneidade esse gesto parece hesitante. O mundo urbano e digital já não oferece céus que falem dos deuses, mas telas luminosas que multiplicam verdades instantâneas onde a força do Mistério e a sua verdade se torna irrelevante e absurda. Diz-nos um pensamento da Sagrada Escritura, que a fé é fundamento das coisas que esperamos e prova daquilo que não vemos.

É um fundamento que é dom, algo que se recebe, mas não um dom ilusório que se opõe à razão, ao indagar e por isso, realidade que não nos faz permanecer na escuridão, no vazio, na incerteza ou na subjetividade. A fé é dom sobrenatural recebido de Deus, por isso considerada virtude teologal, luz que faz grande e plena a vida, que nasce do encontro com Deus, que nos atraí e revela o Seu amor. A fé é uma forma de relação pessoal, implica alteridade, abertura e aceitação de um “Outro”. A fé cristã na sua dimensão existencial, objetiva, é basicamente uma experiência pessoal de confiança, definida pelos seus conteúdos: relação e entrega a Deus, vivência de uma aliança com Deus que se revelou em Jesus Cristo.

Infelizmente, transformou-se agora numa experiência solitária ou fragmentada, ora cultivada em templos que competem com shoppings, ora dissolvida em espiritualidades privadas, personalizadas como playlists. Esta crise de fé não é apenas ausência, mas deslocamento. De facto, o sagrado não desapareceu: migrou. Está agora nos discursos do bem-estar, na meditação guiada por aplicativos, nos algoritmos que prometem autoconhecimento, nas causas políticas que assumem fervor quase religioso. Ainda assim, o coração humano continua a sentir falta daquilo que nenhuma técnica substitui: a confiança num mistério maior que não se mede, não se calcula, não se programa. Por isso, a crise de fé é também revelação. Quando a tradição treme, o essencial se revela: a fé não é obediência cega, mas confiança radical naquilo que dá sentido.

A dúvida, longe de ser inimiga, é a purificação que retira as escórias do hábito e obriga cada um a se perguntar: “Em que realmente acredito? O que sustenta minha vida quando todas as estruturas ruem?” Talvez a fé neste nosso tempo precise renascer como peregrinação mais do que como instituição; como diálogo mais do que como dogma; como silêncio partilhado mais do que como espetáculo. Talvez precise ser não uma chama que queima alta e orgulhosa, mas uma brasa persistente, humilde, capaz de aquecer diante o vento frio da incerteza da convicção individual. A antropologia contemporânea reconhece que a religião se reinventa em formatos inéditos, inclusive mediados pela tecnologia digital.

Assim, falar em “crise de fé” é, em certo sentido, falar de transformação. O que se fragiliza talvez não seja a necessidade humana de sentido transcendente, mas as formas históricas que antes o garantiam. Tudo isto constitui um enorme desafio para quem crê e acolhe a fé como um dom revelado e recebido em comunidade. Aceito que, mesmo sem ver, algo já está em movimento? Que uma sabedoria maior, um amor maior, sustenta tudo? Que quando me entrego não me enfraqueço; pelo contrário, me liberto para viver com esperança, coragem e gratidão? Que fé devo fazer crescer e aumentar na minha vida?