Afonso III, o rei que ouviu os «autarcas» da sua época

20:00 - 07/08/2025 OPINIÃO
Paulo Freitas do Amaral Professor, Historiador e Autor
A poucos meses das eleições autárquicas, é importante lembrar que o municipalismo português não nasceu com o 25 de Abril nem é um exclusivo da democracia contemporânea. As suas raízes são fundas, medievais, e um dos seus maiores impulsores foi precisamente um rei do século XIII: Afonso III. Foi ele quem, em 1254, nas Caldas da Rainha, tomou a inédita decisão de convocar Cortes para ouvir os “homens bons” dos concelhos — os autarcas da época — sobre uma medida sensível: a quebra da moeda.
 
O rei tinha poder absoluto. Mas preferiu escutar. Discutiu com os representantes populares e, perante os seus argumentos, recuou. Cedeu à vontade dos concelhos. Este momento marcou a história política do país e consagrou uma prática de consulta e participação popular que se tornaria marca identitária da governação portuguesa ao longo dos séculos. Portugal era, de facto, uma vanguarda: só Afonso VII de Leão e Castela, avô de Afonso III, fizera algo semelhante, tornando ambos os primeiros monarcas da Europa a ouvir o povo em Cortes — um feito que nem os reis ingleses se atreveram a imitar na época.
 
D. Afonso III foi muito mais do que o último conquistador do Algarve. Filho de D. Afonso II e irmão de D. Sancho II, ficou para a história como um dos monarcas mais visionários da Idade Média europeia. O seu percurso singular começa ainda em França, onde cresceu na corte da rainha Vitória, educado pelos melhores pedagogos do tempo, entre os quais se destaca Jean de Joinville, e na companhia de Luís IX, seu amigo íntimo de infância, que viria a ser canonizado como São Luís. Foi neste ambiente refinado que Afonso se destacou como homem culto e corajoso, ganhando fama de herói ao participar em várias campanhas militares e distinguindo-se na frente de batalha em França, como um guerreiro temido que derrotava inimigos corpo a corpo.
 
Os contactos diplomáticos e o prestígio que conquistou entre a elite europeia — em contraste com o descrédito em que caíra o seu irmão, D. Sancho II, apaixonado e desligado dos deveres régios — prepararam o caminho para a sua aclamação em Portugal, com o apoio do Papa e da alta nobreza. D. Sancho II não deixou descendência, e a alternativa natural foi o seu irmão Afonso, homem respeitado além-Pirenéus e com sólida rede de alianças internacionais.
 
Após conflitos com o irmão e já com o apoio do poder eclesiástico, Afonso III assumiu o trono português com uma visão de Estado profundamente reformadora. Reorganizou o território em comarcas, acelerou a emissão de forais, estruturou uma administração mais eficaz e alterou os símbolos da bandeira nacional — que, com castelos e quinas, perduram até hoje como marca da nossa identidade.
 
Homem de saber e de visão, Afonso III cercou-se dos melhores. Entre os seus amigos próximos contava-se Pedro Hispano, futuro Papa João XXI, o único Papa português da história. Foi este ambiente de cultura e inteligência que legou ao seu filho, D. Dinis. O “Rei Poeta” e fundador da Universidade de Coimbra não surgiu por acaso: herdou do pai o gosto pela ciência, pela arte de governar e pela modernização do reino. Foi o próprio Afonso III quem trouxe de França o pedagogo responsável pela sua educação, assegurando a continuidade de uma formação de excelência para o seu herdeiro.
 
Ao estabilizar as fronteiras, preparou o caminho para que D. Dinis pudesse assinar o Tratado de Alcanizes — a definição final da fronteira com Castela, que permanece inalterada até hoje. Portugal, tal como o conhecemos, nasceu com Afonso III, o rei que pôs o povo a falar, que soube conquistar pela força e governar com a razão, e que deixou ao filho não apenas um trono, mas uma pátria consolidada.
 
E deixou-nos também uma lição atual: ouvir os representantes do povo é, afinal, uma tradição portuguesa com mais de sete séculos. Que a memória de Afonso III nos inspire nestas eleições autárquicas. Afinal, não estamos apenas a escolher presidentes de câmara — estamos a honrar uma prática que nos fez vanguarda democrática antes mesmo de a palavra existir.