Azul, a nova cor do socialismo

20:00 - 26/06/2025 OPINIƃO
Paulo Freitas do Amaral Professor, Historiador e Autor
Comecemos com uma constatação cromática: Portugal está a tornar-se daltónico. Daltónico ideológico, entenda-se. A poucos meses das eleições autárquicas, ergue-se pelo país uma paisagem de outdoors, cartazes e painéis onde reina uma nova paleta: azul-claro, azul-nevoeiro, azul-pálido, azul-água-choca. Tudo menos vermelho.
 
Sim, leu bem: o vermelho, outrora cor vibrante da revolução, da luta de classes, da utopia socialista e do punho erguido, desapareceu. Evaporou-se. Sumiu com a mesma discrição com que certos dirigentes partidários esquecem promessas eleitorais mal passa o calor do comício.
 
É como se uma nova moda tivesse tomado conta dos criadores visuais da esquerda: a moda do azul disfarçado, do grafismo assético, do “não parecemos aquilo que somos”. E o mais curioso é que este fenómeno não se limita a partidos periféricos ou a movimentos independentes. O próprio Partido Socialista — sim, o PS que durante décadas vestiu o vermelho como uma segunda pele — redesenhou o seu logótipo com tamanha palidez que parece agora o selo de uma firma de contabilidade escandinava. O punho ainda lá está, é verdade. Mas já não está vermelho. Está lavado, neutro. Quase arrependido de ter pertencido ao século XX.
 
A explicação é simples: depois da vitória da direita nas últimas legislativas, a esquerda decidiu que, se não os pode vencer, copia-os. Ora, como a direita já ocupou todo o espectro do azul — do azul-escuro patriótico do Chega ao azul-corporativo da AD — a esquerda não teve outra opção senão invadir os tons pastéis. E não esqueçamos que quem iniciou esta tendência foi, em boa medida, o CDS. Ainda antes de “reformas estruturais” se tornarem moda, o CDS já se apresentava aos eleitores com azul-clarinho e promessas de ordem, família e responsabilidade — embrulhadas num design limpo e conservador, como convém.
 
Não deixa de ser irónico — e, em certo sentido, revelador — que o azul tenha sido precisamente a cor dominante da antiga bandeira monárquica portuguesa, durante séculos. Azul e branco: os tons do escudo real, da Igreja institucional, da autoridade e da ordem. O azul não é, historicamente, uma cor de revolta nem de ruptura: é a cor da continuidade, do compromisso, do poder estabelecido — e, por isso mesmo, agradava à burguesia oitocentista, aos sectores mais moderados da política liberal, aos que preferiam estabilidade a utopia.
 
O que assistimos agora é à inversão total da paleta: a esquerda, que antes se orgulhava da sua herança contestatária, passou a vestir-se com as cores da prudência. Não por convicção ideológica, mas por conveniência eleitoral.
 
Veja-se o caso de Vendas Novas: os cartazes da candidata do PS à presidência da câmara apresentam uma estética indistinguível de qualquer campanha centrista — tons frios, design minimalista, ausência total de vermelho. Tapando o símbolo, ninguém adivinha o partido. E em Guimarães, o fenómeno é ainda mais caricato: os cartazes atuais do PS local são praticamente uma réplica dos usados pela AD nas últimas autárquicas com Coelho Lima. Mesma pose, mesma cor, mesma fonte tipográfica. Se houve plágio, não foi de ideias — foi de imagem.
 
E convém não esquecer que a CDU já há algumas eleições vinha abandonando o vermelho. Muitos dos seus cartazes surgem em fundos azuis ou azulados, com uma estética cada vez mais depurada e tecnocrática. Entre o “trabalhadores, uni-vos!” e o “experiência e estabilidade”, houve um rebranding silencioso. E azul.
A política portuguesa tornou-se uma loja de decoração: neutra, escandinava, esteticamente segura. Os partidos já não comunicam visões — desenham atmosferas. Não pedem o voto, pedem “confiança”, “tranquilidade”, “futuro” — tudo envolto numa névoa azul e frases de coaching.
 
É o fim da política como espaço de confronto e o início da política como catálogo de design gráfico. A esquerda aprendeu com a direita — e com o CDS em particular — que o eleitorado já não quer gritar palavras de ordem: quer sentir-se confortável. E se isso implicar renunciar à cor, ao símbolo, à memória? Pois que se renuncie.
 
Mas atenção: por detrás deste verniz azulinho, esconde-se um medo antigo — o medo de parecer radical, de dividir, de dizer ao que vem. O PS, o Bloco, a CDU trocaram a paixão pelo marketing, e a clareza pelo cálculo.
 
E assim chegámos, sorrateiramente, a uma política quase monocromática. Um país em que todos os outdoors, de esquerda a direita, parecem vir da mesma agência de publicidade. Onde a diferença ideológica se dissolve na harmonia visual. E onde, ironicamente, quanto mais azul se pinta o espaço público, mais desbotada fica a democracia.
 
Oxalá, no dia das eleições, os eleitores saibam distinguir entre os muitos azuis. Porque, se não souberem, acordaremos com um país pintado de um só cor — e isso, meus caros, nunca foi sinónimo de liberdade.