A atualidade política deve servir como base para um debate renovado sobre o nosso sistema eleitoral.
Qualquer reforma, através de voto preferencial ou de círculos uninominais, deve garantir a responsabilização individual dos eleitos. Um círculo de compensação nacional é essencial para garantir proporcionalidade, mas não vai de encontro ao defeito central do atual sistema – a impossibilidade de adequadamente escrutinar o trabalho político dos deputados.
Apesar da sua cobertura predominantemente novelesca, os desenvolvimentos políticos das últimas semanas têm, para o observador atento e inclinado para a reflexão, representado discussão implícita e embrionária duma questão fundamental, tantas vezes preterida pela espuma dos dias mediáticos: como avaliar um candidato a cargo público? Como aferir o seu mérito e percurso relativamente à sua relação pessoal com o círculo pelo qual se candidata? Qual o valor da competência técnica, ou da constância ideológica, ou da lealdade partidária, ou da independência intelectual?
Em Democracia, este debate, que é no fundo acerca de critérios de eleição tanto como acerca de indivíduos concretos, resolve-se nas urnas. O nosso atual sistema eleitoral, contudo, impede que esta resposta possa ser dada pelo eleitor. Escassa consideração tem sido dada ao facto de que, na ausência dum mecanismo democrático que manifeste a preferência popular por qualquer um dos traços acima descritos, este debate, irresoluto nas urnas, passa para a esfera partidária. Uma discussão que se pretenderia aberta tem lugar, a cada ato eleitoral, apenas e tão somente no seio dos partidos, sem que os portugueses tenham a oportunidade de se pronunciar sobre os candidatos que preferem, em vez de sobre o logótipo colorido que acham melhor.
Por outro lado, mais de meio milhão de votos foram desperdiçados nas últimas eleições legislativas, prejudicando sobretudo os eleitores dos círculos mais pequenos. O sistema eleitoral português é proporcional, mas a grande heterogeneidade em termos da magnitude (isto é, número de eleitos) de cada círculo, em conjunto com a regra de Hondt, faz com que a tradução de votos para mandatos só se aproxime da proporcionalidade nos círculos maiores.
Isto gera um sistema político diferenciado regionalmente, bipartidário nos círculos pequenos mas multipartidário nos maiores, o que também tem consequências ao nível do comportamento dos deputados eleitos por círculos diferentes: um deputado dum círculo menor vê as suas eleições mais personalizadas, enfatiza mais assuntos locais, e vai mais vezes contra a direção do partido do que um deputado dum círculo maior onde listas fechadas significam que a sua eleição depende sobretudo da liderança partidária.
Em círculos de média dimensão, como é o caso do Algarve, vemos o pior de ambos os mundos: proporcionalidade baixa, em que um quinto do eleitorado vê o seu voto descartado, e listas fechadas, atribuindo aos partidos um papel preponderante ao retirar ao eleitor a capacidade de responsabilizar deputados individuais pelo seu trabalho em representação da região.
Este é, portanto, um sistema injusto e ineficaz, que tanto faz depender a voz política dum cidadão do seu distrito de residência numa inaceitável discriminação regional como impede a criação de verdadeiras ligações de responsabilização entre eleitos e eleitores.
Face a este problema de longa data, várias propostas têm sido apresentadas, aproveitando as reformas constitucionais de 1989 e 1997, que permitiram, respetivamente, um círculo nacional e a articulação entre círculos plurinominais e uninominais desde que assegurando a proporcionalidade. Contudo, estas disposições constitucionais nunca se traduziram em lei, que manteve o sistema eleitoral estabelecido para as eleições constituintes em 1975.
Em 2021, ainda sob a liderança de Rui Rio, o PSD apresentou uma proposta de reforma do sistema eleitoral. O objetivo era homogeneizar os círculos eleitorais, desagregando os círculos maiores de modo a que todos elegessem entre 3 e 9 deputados, e criar um círculo de compensação nacional que assegurasse a proporcionalidade. Em vez dos atuais 22 círculos eleitorais, a proposta do PSD teria 30 círculos territoriais, um círculo nacional, e os dois círculos da emigração (Europa e Fora da Europa).
A SEDES e a Associação Por Uma Democracia de Qualidade, ecoando uma proposta do Governo de António Guterres, tinham também sugerido um círculo de compensação nacional, mas combinado com círculos territoriais maiores junto com círculos uninominais. O eleitor votaria num candidato no seu círculo uninominal, e num partido ou coligação no seu círculo territorial intermédio. Este sistema visava combinar maior responsabilização individual dos eleitos por via de círculos uninominais com maior proporcionalidade através da compensação nacional. Contudo, não é claro o propósito da manutenção da estrutura intermédia, que limita o número de deputados quer do círculo nacional de compensação quer dos círculos uninominais.
Uma verdadeira reforma do sistema eleitoral deve sempre ter em conta que os dois problemas da atual arquitetura eleitoral são a proporcionalidade heterógena, e a consequente desproporcionalidade nos círculos pequenos, e a impossibilidade de responsabilizar deputados individuais dado o sistema de listas fechadas. Propostas que visam verdadeiramente o cerne da questão devem, portanto, lidar com ambos. A proposta da anterior direção do PSD era um passo positivo nesta direção, diminuindo a magnitude dos círculos maiores e introduzindo 34 mandatos de compensação nacional. A criação dum sistema misto, combinando círculos uninominais que permitem a responsabilização individual do trabalho político dos deputados com um círculo de compensação que garanta a proporcionalidade, princípio basilar inscrito na Constituição, seria o ideal.
Foi este o sistema que inicialmente propôs a Iniciativa Liberal. A escassos meses das eleições, contudo, deixou cair o aspeto verdadeiramente reformista da proposta – os círculos uninominais, que quebrariam o monopólio dos partidos nas indicações parlamentares e fortaleceriam o escrutínio democrático dos eleitos – para insistir transparentemente na única componente que a beneficiaria – o círculo de compensação nacional. Não é racional alterar o sistema eleitoral apenas para introduzir um círculo de compensação sem que se altere substantivamente a distribuição de círculos e mandatos. Qual é o propósito de manter assimetrias regionais nas distribuições de mandatos, continuando a impossibilitar que os eleitores avaliem o desempenho dos seus deputados nos círculos de média e grande dimensão?
Em 2018, a JSD aprovou em Congresso Nacional uma moção apresentada pelo atual Presidente da JSD/Algarve defendendo a criação de círculos uninominais como uma possível solução para a adequada responsabilização dos eleitos e como forma de verdadeiramente respeitar a soberania popular, permitindo que os portugueses decidam acerca do mérito de cada candidato a deputado. Outra alternativa seria a desagregação dos círculos maiores e a instauração de voto preferencial, como têm defendido os politólogos André Freire e Marina Costa Lobo. A criação dum círculo de compensação nacional é uma condição necessária para que qualquer destas medidas respeite a proporcionalidade, mas não deve ser encarada como indo ao cerne da questão, que reside claramente nas listas fechadas e bloqueadas que dão aos partidos o monopólio exclusivo dos candidatos a deputados e impedem os eleitores de julgar autonomamente o mérito daqueles que os pretendem representar.
Por fim, importa ressalvar dois pontos, prima facie contraditórios, mas de facto complementares. Qualquer processo de reforma institucional deve ser visto de forma incremental e gradual, e não maximalista. Almejar mudar muito e muito rapidamente é garantir que nenhum dos aspetos da proposta se materializem. Contudo, é importante reconhecer que mesmo uma mudança inicial na abertura das listas ao voto preferencial deve ser encarada como parte duma reforma mais abrangente, que inclua mudanças no procedimento parlamentar, na reforma da justiça, ou mesmo ao nível da descentralização e regionalização. A JSD/Algarve vê a reforma do sistema eleitoral como um elemento, central mas não único, duma reforma mais abrangente do Estado e do sistema político, sem alinhar nem em propostas maximalistas que pedem tudo ao mesmo tempo nem em mudanças de transparente interesse partidário que não respondem aos principais problemas do atual sistema – o caráter fechado das listas e a consequente impossibilidade de adequado escrutínio democrático.