Um dia de sonho

20:27 - 21/09/2023 OPINIƃO
Joaquim Bispo, escritor diletante, http://vislumbresdamusa.blogspot.com/

O cão avançava pela rua, inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, com o dono pela trela, ia inventariando os achados dessa manhã. Parava aqui, a apreciar um odor feminino, avançava, a seguir o rasto, encontrava um cheiro que lhe suscitava dúvidas, voltava atrás a confirmar. Mais à frente, um aroma particularmente intrigante. Demorava-se a deslindar se seria um que tinha descoberto noutra rua, dois dias antes.

Pouco à frente e, perante a vastidão do parque e a ausência de passeantes, o seu dono soltara-o da trela, como incentivo a aproveitar a liberdade. E o cão corria, antecipando os prazeres das grandes extensões.

Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos, a desfrutar do espaço, fazendo levantar poeira e revolutear folhagens. Em aceleração, chegava num instante ao limite da zona tratada e voltava ao pé do dono, uma e outra vez, a aperfeiçoar a técnica.

Com o dono sentado no limite do parque, o cão atrevia-se para lá do bosque, a caminho dos baldios. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. De súbito, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça, era o prazer da perseguição.

Inesperadamente, chegou a uma grande clareira onde espinoteava uma dúzia de outros cachorros. Santa mãe cadela! Estava ali a malta toda. Que surpresa boa.

Latiu de alegria; os amigos deram-lhe as boas-vindas, em ladridos cristalinos. Após breves cumprimentos, iniciaram um jogo que todos adoravam: voltear em perseguições que alternavam com fugas, num todos-contra-todos em que ninguém se magoava. Dentes de fora em exibição festiva, na farsa do combate. Que gozo! Este era o dia mais feliz da sua vida.

Ladrou alto e então acordou. Deu por si confinado à varanda do seu dono, como sempre, e, lá em baixo, exibia-se, arrogante, o sinistro Rottweiller do bairro.