PALAVRAS DE FOGO: DESAFIO PARA UM RENASCER | MISERICÓRDIA!

10:48 - 26/11/2022 OPINIÃO
Por: Padre Carlos Aquino | effata_37@hotmail.com

“Ide aprender o que significa: quero a misericórdia e não o sacrifício, pois não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mateus 9, 13). Viver a misericórdia pode e deve constituir um grande desafio à nossa vida. Mais do que um conceito religioso, uma doutrina a saber, um valor antropológico, a misericórdia é para os cristãos a realidade que Jesus Cristo tornou presente na Sua palavra e no Seu agir, revelando a verdade de Deus como Pai. E ensinou que a mesma deve constituir prioridade na vida e na missão de cada discípulo.

Forma a sua identidade. Com Jesus aprende-se que a misericórdia é a solicitude de quem abre o seu coração (cors) ao pobre (miseri), é a atitude de quem se inclina com afeto profundo, com compaixão, sobretudo para com quem sofre, quando é ameaçado e ferido na sua existência e na sua dignidade. Não é uma medida medíocre, a medida dos frágeis. É a medida maior do amor que toca a vida e a transforma. A mentalidade contemporânea parece opor-se não simplesmente à verdade da misericórdia como tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. Mas viver a misericórdia significa voltar o coração para o essencial, centrarmos todas as nossas faculdades, mente, vontade e coração, nessa fonte donde dimana a vida, nesse Paraíso que buscamos famintos de felicidade e de paz e que é Deus.

Num mundo marcadamente dominado pela selvajaria das leis do mercado e seduzido pelo consumo e pelos bens materiais, onde a pessoa é tantas vezes ferida nos seus direitos e dignidade e reduzida a um número sem peso é preciso e é urgente rescender e fazer crescer a misericórdia. Reacendi este imperativo ao ruminar as palavras cheias de fogo e de sedes, de segredos e de transcendência de Lídia Jorge no seu mais recente romance intitulado: Misericórdia. Obra dedicada pela autora a Maria dos Remédios, sua mãe muito amada, que lhe pediu que escrevesse esta história.

Um grito a rasgar todos os inomináveis corpos da noite que tantas vezes nos enlaça e domina, uma narrativa profética sobre a história dos últimos, “gente pobre, rotos, descalços, abandonados, loucos, imigrados sem eira nem beira, imigrantes sem lugar onde caírem mortos, raparigas feias que todos enjeitam, pelintras de todo o jeito, gente assassinada, gente que se atira à água para morrer, para o destino em troca de salvar os filhos, gente sem religião, sem-abrigo, sem pátria, sem casa, sem modos nem figura(…) criaturas, figuras que não se levantam do chão, miseráveis entre os miseráveis”.

Porque a esperança é imortal mesmo para um mundo em sua desordem contínua e para quem caminha para o final do seu tempo como rebanho tresmalhado sem pastor nem dono, mesmo quando tumultos agitam o interior das casas, mesmo quando a dor é mais concreta que a alegria e a tristeza. Porque a misericórdia não tem hora marcada para entrar ou sair do ser humano.

Faz de nós antenas e coração debruçado. E os finais não são o fim dos livros. Porque é preciso acreditar que há seres que nos protegem e que o futuro vai ser um esplendor! É preciso lembrar: “Todos os homens querem misericórdia, mas infelizmente nem todos procedem de modo a merecê-la; todos a desejam receber, mas poucos a querem praticar. Ó homem, com que coragem ousas pedir o que recusas dar aos outros? Quem deseja alcançar misericórdia no céu, deve praticá-la neste mundo (…) Que espécie de gente somos nós? Quando Deus dá, queremos receber; mas quando pede, não queremos dar. Quando um pobre tem fome, é Cristo que passa necessidade como Ele próprio disse” (Cesário de Arles, séc. VI).