Horácio Ferreira explica ao nosso jornal que este projeto é já «um desejo antigo que ia na nossa mente, a criação de uma Confraria da Mãe Soberana». Continua a explicar que «a Confraria é uma ligação contínua e espiritual entre a Mãe Soberana e os seus Confrades. Estes podem viver em Portugal ou no estrangeiro.
O ano de 2020 ficará marcado na história como o início de uma pandemia que nos acompanha em 2021 e não se sabe quando terminará. Entre avanços e recuos numa curva de casos e mortes covid-19, a esperança é que tudo passe e tudo volte à ‘velha normalidade’. Sem grandes certezas de nada, se pudéssemos dizer que a esperança é um objeto, escolheríamos talvez o formato de uma vacina. Mas e a fé? A fé que sempre foi sentida e partilhada em locais e eventos de culto pelos cristãos, adequou-se aos ‘novos tempos’ e acontece hoje na casa de cada um, sozinhos e muitas vezes através de um ecrã. Lembram-se as festas e a união na hora de orar. Mas já jamais se perde a confiança no Deus que cada um crê.
Em Loulé, pelo segundo ano consecutivo, as Festas da Mãe Soberana vão viver-se de forma diferente, devido à situação epidemiológica que Portugal apresenta. Se em março do ano passado vivíamos na dúvida do que era afinal esta doença, este ano muitos recordarão as vidas que se perderam e que lhes diziam algo ou a ‘maldita’ infeção que lhes tocou. A fé deve continuar e as festas serão sempre celebradas no imaginário de quem as sentes. Na Paróquia de Loulé, o Padre Carlos Manuel Patrício de Aquino recorda a forma como os cristãos vivem este momento de celebração da Nossa Senhora da Piedade: “O povo cristão viverá a dimensão da festa muito a partir da fé, da importância que Maria tem na história da salvação e na vida da Igreja.”
Se a fé é transversal a localidades, países e até religiões, as Festas da Mãe Soberana tornam-se especiais pela camada de população que consegue atingir. “Vem muita gente de fora para esta festa que tem uma dimensão memorável”, explica o pároco natural de Vila Real de Santo António. Num momento de interligação profunda entre a população, “sabemos que muita gente da cidade pode nem sempre ter aquela dimensão profunda de fé. Alias, em Loulé, alguns afirmam que não sabem se existe Deus (confessam-se agnósticos ou ateus), mas dizem que a Mãe Soberana existe, o que é interessante. Essa gente também faz a festa. Não gosto de dizer que há uma festa profana e uma cristã, há uma festa única, onde todas estas expressões (mais religiosas ou do povo) se conjugam”, acrescenta.
Questionado se estas festas são um marco histórico de Loulé, a pronta resposta do Padre Carlos de Aquino é sim. “Até uma poesia muito linda que conhecemos de António Aleixo, que diz: ‘Vai dentro daquele andor / Aos ombros da mocidade / A Mãe de Nosso Senhor / A Virgem da Piedade’. Não sei se ele era muito ou pouco crente, mas nestes versos, ele fala de fundo profundo e teológico o que é o conteúdo da festa.”
A importância da família é um tema que faz parte daquilo que é o ADN da Igreja cristã e as Festas da Mãe Soberana recordam a cada ano a beleza de dar valor à matriarca, algo que o pároco de Loulé considera essencial devido aos tempos ‘apressados’ que vivemos, sobretudo as gerações mais recentes. “Parece que os pais são dispensáveis ou não se valorizam e é importante trazermos essas dimensões à nossa vida: Mãe é mãe. É curioso que muito do culto de Nossa Senhora, até das lendas e das fábulas, reclamam aos jovens e à juventude… […] Esta é uma festa jovem. E se olharmos para o rosto de Nossa Senhora, é o rosto de uma jovem. Aliás, ela foi mãe jovem.”
A pandemia e a redescoberta de uma nova forma de viver a Mãe Soberana
Depois de vários anos de tradição, as Festas da Mãe Soberana foram canceladas em 2020 devido à pandemia que espreitava ainda tímida, mas que prometia marcar. E marcou. O Padre Carlos de Aquino considera que o cancelamento era inevitável porque “estávamos diante daquela novidade imensa e de surpresa”. Nessa altura, recorda-se a interrupção da visita do Bispo que estava na Paróquia de Loulé. Acrescenta ainda o pároco que “mesmo a Páscoa não se realizou – pelo menos com a participação do povo. Reinventamos as celebrações e acho que a Igreja redescobriu algo que agora sabiamente deve continuar a usar, que foram os meios digitais. Muita gente tem participado desse modo e atingimos muito público, até de gente que acabou por descobrir a fé neste enquadramento difícil da vida. Mesmo sem virem muito à Igreja, foi gente que gostou de participar. Esta festa sem povo perde o seu significado maior, porque é uma festa onde é importante a participação de todos.”
Por muitas razões, as festas de 2020 não se apagarão da memória. O povo estranhou, mas aceitou. “Mediante aquilo que estávamos a viver, parece que não havia outra resposta. Ninguém criticou [as decisões de cancelamento] aqui na Paróquia, mas a nível da Igreja houve sempre algumas discordâncias sobre estas diretivas. Há Padres e comunidades que acham que nós devemos continuar a celebrar normalmente se temos fé. Contudo, se não defendermos e cuidarmos da vida, como podemos celebrar a fé?”
Em tempos de isolamento, recorda-se a mão-de-obra que era necessária para a realização das Festas da Mãe Soberana. “Os grupos são diversos. Havia a parte da Paróquia; do conselho pastoral; existia um grupo mais alargado que pensava a festa; tínhamos a ajuda dos jovens e escuteiros para preparar os espaços; das senhoras que tomavam em atenção a ornamentação do andor e das Igrejas; o grupo do andor; a equipa de acolhimento; entre outros. Nunca eram menos de 50 pessoas.”
Novo ano, medidas já conhecidas…
A pandemia não ficou em 2020 e o novo ano já nos trouxe dissabores até maiores. Com a situação epidemiológica que vivemos depois do Natal, todos os esforços são poucos para conter o aumento dos casos covid-19. Estamos agora a desconfinar, mas a ‘normalidade’ como a conhecíamos ainda não regressou (e poderá estar longe disso). Pelo segundo ano consecutivo, as Festas da Mãe Soberana não poderão ser celebradas como outrora, mas a verdade é que teremos mais momentos presenciais do que no ano passado.
O Padre Carlos de Aquino explica que “tivemos a ver várias possibilidades e, a partir do momento em que a Igreja pode fazer celebração (só não pode realizar procissões e ajuntamentos), este terceiro programa [criado para as festas] é o que oferece mais segurança. Trazer a imagem de Nossa Senhora à cidade era um perigo imenso porque se é tão difícil o povo cristão perceber as normativas, quanto mais o povo da cidade – facilmente se ajuntariam. A Igreja tem de dar aqui um exemplo”. Desde modo, “a festa será realizada, mas no espaço do Santuário. A imagem [de Nossa Senhora da Piedade] sai à mesma da ermida e há um momento simbólico no seu transporte ao Santuário maior- onde ficará até à chamada Festa Grande - portanto, não desce, mas há a exposição da imagem neste Santuário no Dia de Pascoa. Haverá às 17:00 horas a Missa Solene de Pascoa. De 5 a 16 de abril às 21:00 horas, todos os dias à noite no Santuário, haverá sempre o Terço e a Missa Solene”. Já no “dia 17 e 18 é o fim de semana mais importante, da Festa Grande, e quem preside às celebrações é o Arcebispo de Évora. Na noite de sábado do dia 17 é já ele que preside à Missa, com expressão na envolvência das famílias e dos jovens. No dia da Festa Grande, às 16:00 horas haverá também Missa Solene e depois um momento de consagração simbólico da reposição da imagem na ermida. Nestes dois dias principais, a população não se pode juntar toda no Santuário e eu queria pedir às pessoas que compreendessem estas orientações.”
O pároco deixa claro que a participação interna a estas celebrações, cumprindo as regras impostas pela Direção-Geral de Saúde, é de 100 pessoas. Contudo, “as celebrações serão transmitidas nas páginas da Paróquia, da Câmara Municipal e até da própria Diocese, através da Folha de Domingo”. Mas há mais boas notícias, é que a Câmara Municipal, em colaboração com a Paróquia, vai facultar um autocarro todos os dias, das 10:00 às 17:00 horas, para conduzir os peregrinos ao Santuário e depois trazê-los de volta a casa.
Pedidos de ajuda das famílias aumentam devido à pandemia
Depois de dois confinamentos e largos meses de crise, muitas famílias estão agora a passar por uma fase economicamente frágil. O pároco de Loulé conta que “aumentámos muito na comunidade o número de pessoas que nos pediu ajuda. Às vezes até pedem para pagar a renda, a luz, a água ou o gás, mas não podemos satisfazer todas as necessidades. Mas a nível alimentar garantimos uma ajuda significativa”. Contudo, até mesmo esta e outras Paróquias estão a passar uma fase delicada: “As Paróquias ficaram (o que foi muito grave também), com alguns problemas económicos porque deixou de haver celebrações…. As que existem são curtas e não é justo levar-se à partida aquilo que uma celebração ou um velório comportaria. Diminuíram-se profundamente as receitas e também não houve Missas, que deixavam sempre alguma oferta.”
Loulé terá uma nova Confraria
Horácio Ferreira é engenheiro técnico agrário, tem 64 anos e participa nas Festas da Mãe Soberana há tantos anos que nem se recorda qual foi o primeiro. Ainda assim, o que não esquece é que começou a carregar o andor aos 19 anos – tarefa que fez religiosamente todos os anos até aos 58 anos. Mesmo emigrado no Canadá, conta que vinha a Loulé de propósito para carregar nos ombros a Nossa Senhora.
“Levar o andor é aquilo que um filho de Loulé quer. Eu tenho na família uma grande tradição de homens do andor. Sou para aí a quarta ou quinta geração a fazê-lo. Foi muito honroso para mim começar a pegar no andor. A minha admiração pela Mãe Soberana é muito forte. Costumo dizer que sou um mariano puro. Nossa Senhora para mim é importante na minha fé e no completar da minha dedicação à Mãe”, diz orgulhoso Horácio Ferreira.
O louletano conta que “há dois grandes momentos [nas festas]: um de interiorização com a Mãe no aspeto puro e duro da religião e fé e o segundo com a parte humana, onde entra o calor humano, o espelhar da vivência do povo e o fervilhar junto aos homens do andor e da Mãe Soberana. Acredito sempre que o momento mais difícil é a subida, mas é também um momento muito agradável, devido à apoteose e sentido de vitória por ter ultrapassado mais um ‘obstáculo’”.
Em concordância com o Pároco Carlos de Aquino e a população em geral, Horácio Ferreira viveu de forma muito sentida o cancelamento das festas. À parte disso, “do ponto de vista oficioso e da fé nada mudou”. Inevitavelmente, logo em seguida, recorda que “o homem do andor está meses a cuidar-se para puder estar nas melhores condições para a altura da festa e depois esta não se realiza. É um sentimento de falta… Falta de adrenalina e faltam a família e as conversas”.
Com muitos vazios espelhados no coração de quem vive estas celebrações, Loulé prepara-se para abraçar uma nova Confraria, a qual Horácio Ferreira irá presidir. O Padre Carlos de Aquino resume que “pensei no senhor Horácio porque ele foi um grande dinamizador enquanto homem do andor”.
Horácio Ferreira explica ao nosso jornal que este projeto é já “um desejo antigo que ia na nossa mente, a criação de uma Confraria da Mãe Soberana”. Continua a explicar que “a Confraria é uma ligação contínua e espiritual entre a Mãe Soberana e os seus Confrades. Estes podem viver em Portugal ou no estrangeiro. É uma forma de aproximar a Nossa Senhora da Piedade de cada pessoa que a vive e que a ama. A Confraria não pretende gerir nada, pretende ser o interlocutor entre a Mãe Soberana e cada um dos Confrades”.
Ainda numa fase muito embrionária, este projeto “está em criação”. “Estamos nas inscrições e na fase de arranjar Confrades. A ideia foi efetivada antes da pandemia e tudo parou depois. As pessoas que se querem juntar podem preencher a ficha de inscrição”. Em termos de objetivos, Horácio Ferreira deixa claro que “esta Confraria vai envolver-se em tudo o que é espiritual e social. Esta pandemia mostrou uma série de falências que é necessário corrigir através da entreajuda das pessoas. Essa é uma responsabilidade da Igreja”.
“Quero dizer a todos que reflitam se, de facto, a Confraria pode ser uma mais-valia na sua vida e uma participação na entrega ao irmão e a Nossa Senhora, de modo a aprendermos com ela e com o exemplo que ela nos transmite”, acrescenta o presidente deste projeto. Como mensagem final, Horácio Ferreira reflete que “neste período de resiliência, em que somos convidados a ficar em casa para nos defendermos a nós e aos outros, rezemos muito a Nossa Senhora da Piedade para que esta pandemia passe”.
Também o Padre Carlos de Aquino, quis deixar uma mensagem final de positividade: “Neste tempo tão difícil que estamos a viver, eu acho que a fé é uma luz que nos pode ajudar a não desistir de caminhar, sermos resilientes e sobretudo de efetivarmos a nossa esperança. É termos a certeza de que tudo tem um sentido e que caminhamos com esse sentido na vida. Gostava muito que todos vivessem as Festas da Mãe Soberana com alegria e respeitassem as orientações para nos protegermos e protegermos a vida e a dos outros. Proteger a vida é a maior dimensão cristã”.
Por: Filipe Vilhena