Vânia é a ‘menina de ouro’ e a filha do meio de um casal com mais dois filhos homens, que atualmente têm 40 e 33 anos. Quando nasceu, a filha de Dina Quinta e Carlos Quinta era uma «bebé normal, muito traquina e irrequieta», assume a mãe. Contudo, a vida nem sempre é linear e prega-nos partidas. Aos 35 anos, Vânia tem uma história de vida recheada de desafios e superações. Como num conto, pode dizer-se que esta história teve um final feliz.
Comecemos pela infância de Vânia. Com uma gravidez normal, a jovem era uma entre tantas crianças ‘traquinas’ e ‘irrequietas’. Quando ainda era pequena, começou por lhe aparecer uma mancha na cara, que se assemelhava a um angioma. Os médicos descansaram a mãe, mas as manchas começaram a espalhar-se e a notar-se mais. “Nunca se pensa que o nosso filho vai ter algo de mal”, confidencia Dina Quinta. Contudo, os ‘estranhos’ sintomas iam-se manifestando e aos quatro anos teve a queda dos primeiros dentes. Estava a comer uma maçã e caíram-lhe os dentes, algo que é muito prematuro.
A mãe conta que Vânia tinha um atraso na fala e reações perante as outras crianças de alguma agressividade. “Tinha um pressentimento de mãe e não me enganei: ela não era como as outras crianças”. Após uma avaliação geral e um TAC, para perceber se tinha um desenvolvimento normal ou alguma anomalia, Vânia foi encaminhada para o Hospital dos Capuchos, em Lisboa. Ia para ficar internada, com 6 anos. A mãe – ainda jovem e despreparada para lidar com uma situação tão delicada – nunca chegou a saber o resultado do TAC e confessa que na altura não teve o impulso de questionar o médico. O problema das deslocações entre Lisboa e o Algarve começou aqui e Dina Quinta admite que “o coração ficou lá quando a deixei”. A mãe fez alterações no horário de trabalho para conseguir suportar toda esta situação, mantendo-se sempre a trabalhar.
“Acho que eles foram à procura de algum tumor, que não encontraram”, confidenciou Dina Quinta
Os médicos avisaram Dina Quinta que a criança iria ser operada, mas não revelaram o motivo. Numa altura de pouca informação, a mãe confiou nos médicos e não fez muitas perguntas. “Estava com um receio enorme de a ver sair do bloco”, confessa. “Acho que eles foram à procura de algum tumor, que não encontraram”, mas “ela foi ainda operada novamente”. “Hoje fico a pensar, no que realmente eles foram à procura…”, confidencia. A verdade, é que o médico nunca deu muita atenção ao caso da Vânia e nem procurou a sua mãe para lhe explicar o que estava ao certo a acontecer.
Após os procedimentos cirúrgicos, os olhos de Vânia ficaram negros envolta. “Os médicos estavam impressionados com a situação da Vânia, não sabiam o que lhe haviam de fazer”. A jovem tinha um aneurisma na carótida da direita, que estava a chegar à traqueia. A pequena Vânia não tinha sintomas de nada nessa altura. Novamente no bloco operatório, fez depois a laqueação da carótida direita. “Quando eu vi que a minha filha tinha sido operada no pescoço, questionei se iria haver uma nova intervenção e a resposta foi: ‘Penso que não’”. Durante este tempo, uma senhora que trabalhava no Hospital, ofereceu-se para cuidar da Vânia, sendo uma enorme ajuda para descansar o coração dos pais e da família da jovem, que ultrapassava uma “doença sem nome”.
Oito dias depois, ocorre outra cirurgia. “Cheguei à escola onde trabalhava e fui-me embora”, refere. Era a terceira operação, num curto espaço de tempo. “As enfermeiras disseram que era uma operação de risco, uma vez que iam tratar do aneurisma”. Quando terminou a operação, a enfermeira revelou que tudo tinha corrido bem e que o aneurisma estava agora controlado. O médico continuava com uma postura muito ausente acerca do caso de Vânia, confidencia Dina Quinta.
A aparência física de Vânia perante as intervenções cirúrgicas
Vânia teve de cortar o cabelo devido às operações, perdeu a capacidade de visão no olho esquerdo devido às cirurgias que realizou, mas os médicos não lhe disseram nada, foi Dina Quinta que reparou que a filha estava com algum problema de visão. “Ela pegava nas coisas e parecia que estava a jogar as coisas para o chão, perdeu a noção de espaço”, refere. Apesar de todas as complicações, Vânia fez a escola dentro da normalidade até aos 14 anos. “Depois disso, os problemas começaram novamente a aparecer” e Vânia começou por ter o olho direito mais sobressaído que o outro, conforme reparou a irmã de Dina Quinta. Ficou depois internada e tinha novamente de ser operada.
O médico diagnosticou uma lesão e foi feita uma reconstrução óssea, pois Vânia tinha um tumor no orifício onde desaguam os líquidos. Depois disso, deu-se um quadro de hidrocefalia e Vânia foi operada novamente. Antes de entrar no bloco, Dina Quinta conta emocionada que a filha lhe ia dizer algo, mas acabou por perder os sentidos devido à anestesia. Até hoje, não sabe o que a filha queria dizer. Contudo, o que se sabe é que mais dois minutos poderiam ser fatais para a jovem.
A adolescência e o bullying
A filha de Dina Quinta ficou com válvula externa durante dois ou três anos e haviam cuidados especiais a ter, como com as ondas do microondas, que eram prejudiciais, entre outras coisas. Vânia tinha também atrofia ótica e começou apenas a ver sombras, já na sua adolescência.
A escola passou a ser diferente. “A Vânia não tinha os apoios que eram necessários e naquela altura não havia muitos recursos para crianças diferentes”. A escola quis dar o 9º. ano à pequena guerreira, mas Dina Quinta recusou e quis que esta repetisse o ano, de modo a ter a mesma oportunidade de outras crianças em aprender, ainda que as coisas tivessem de ser ampliadas e o que é agora conhecido como bullying já existia. “Tanto da parte dos professores, como auxiliares e colegas, ela queixava-se. Uma vez chegou a dizer-me que a professora lhe perguntou: ‘tu não vês o teste ou não queres ver?’”. Os amigos eram poucos, “havia um ou outro mais chegado, mas ela sofria muito”. Naquela altura, não era ainda obrigatório fazer o 12º ano e Vânia acabou por se ficar com o 9º ano e foi aprender braile para Lisboa.
A pior fase da vida de Vânia
O fim da adolescência e início da fase adulta foi “a pior da vida dela”, pois Vânia acabou por ser internada de urgência, na altura da Páscoa, tinha ela 19 anos. “Ela gostava muito de ir à Missa comigo e no domingo de Páscoa não foi, queixava-se de dor de cabeça”. Após dores de cabeça e vómitos, acabou por ir de urgência para o Hospital de Faro. Ao chegar lá, foi sedada e no outro dia disseram-lhe que ela estava bem. Contudo, Dina Quinta sabia que este estado era provisório e provocado pelos medicamentos e insistiu no seguimento da filha em Lisboa.
Já em Lisboa, Vânia dizia com aflição que a sua cabeça iria ‘rebentar’ e o médico levou-a imediatamente para o bloco operatório. Quando a jovem saiu do bloco, o médico disse que “foi por um triz” que Vânia sobreviveu a mais esta ‘crise’ de dores de cabeça. A situação voltou a repetir-se e foi realizado um TAC, que deu que Vânia tinha hidrocefalia e válvulas entupidas, sendo que aparecia também o diagnóstico de esclerose tuberosa.
Esta é uma doença rara, associada a tumores, que vai corrompendo órgãos vitais e pode variar de pessoa para pessoa. As ‘crises’ de dores de cabeça e válvulas entupidas aconteciam com cada vez menos intervalo de tempo e os médicos hesitavam pela vida de Vânia. “Ela perdeu a vitalidade aos poucos e tinha alucinações”. Retirar o tumor seria a única opção, mas existiam muitos riscos associados. Contudo – e contra todos os riscos – a operação aconteceu e foi um sucesso, para espanto de todos, sendo Vânia não ficou com mazela. “O tumor da minha filha era maior que um ovo de galinha”.
“Mãe, agora eu sei que me tiraram algo da cabeça, porque eu a sinto muito leve”, disse Vânia na altura. Agora, já com 35 anos, Vânia vive em casa, acamada e dependente da sua mãe para tudo. A alimentação, os banhos e o transporte quase ao colo do quarto para a sala fazem-se pela sua mãe. Contudo, o sorriso permanece igual e Vânia continua a ter alguma capacidade para falar. O sorriso da agora adulta Vânia demonstra a sua enorme força, que foi fundamental para ultrapassar a batalha que a vida lhe deu.
Dina Quinta fala de “falta de ética” médica
A mãe de Vânia conta que ao longo dos anos foram várias as intervenções cirúrgicas e que viu a filha ir ao bloco operatório duas vezes no mesmo dia, sendo que numa semana chegou a fazer “umas seis ou sete cirurgias por causa das válvulas”. O sofrimento ao longo dos anos, tanto para a filha como para os pais, foi enorme.
Apesar de, desde o início, ser classificada como doente com esclerose tuberosa, os médicos pareciam ignorar esse facto. “Foi em 2014, quando lhe detetaram dois aneurismas e um tumor maligno no rim, que ouvi falar pela primeira vez em esclerose tuberosa”. Dina Quinta conta que questionou os médicos sobre a situação, pois “já desde o início que isso aparecia nos relatórios”. Os médicos, porém, ficaram apreensivos com a afirmação e não disseram mais nada.
Confrontada com a hipótese de ter existido negligência médica, a mãe relata que “se o médico, em 1993, tivesse visto que a minha filha tinha esclerose tuberosa e a tivesse mandado para outra especialidade […], as coisas poderiam ter sido diferentes”. “Falta de ética” é outra das críticas que Dina Quinta faz, durante os anos em que Vânia sofreu diversas intervenções, uma vez que não lhe explicavam a situação em que ela estava e, muitas vezes, nem ao que iria ser operada. Durante o processo, o acompanhamento psicológico à doente e aos pais também faltou. “Se ela tivesse o acompanhamento, estaria emocionalmente melhor”, revela agora, com mais ‘maturidade’, pois ninguém vem preparado para passar por toda esta situação com um filho. “Ainda hoje não tenho um diagnóstico de esclerose tuberosa", termina.
Filipe Vilhena