Yasha Hindine quer trazer a cidade para dentro do Algarve. E não faz disso segredo. Diz-lhe a matemática do coração que se todo o vazio do mundo cabe em 5412 quilómetros de turismo, então também deve caber a simbologia da cidade.
Uma cidade grande, com todos os seus ângulos e batimentos secretos, sismógrafo fatal do homem futuro.
Não que a história de Yasha tenha começado entre dois arranha-céus. Aproximamo-nos, cumprimentamo-lo, vemos-lhe o sorriso solar. E logo das palavras lhe salta, bronzeado, o típico sotaque algarvio. Não é de surpreender. Nascido e crescido em Portimão, há quem garanta que rapa um prato de biqueirão com tanta destreza como qualquer magano local.
Mas qual a razão desta conversa? Falemos, pois, de Techno, género operático dos tempos modernos. Impetuoso, belo, místico, a chave para decifrar a alma peculiar da cidade; o que a faz palpitar, para onde se dirige. Afinal, que lugar ocupa esta música no mundo de hoje? E qual o seu futuro, e o futuro da EON, promotora fundada em Abril passado por Yasha Hindine?
Para debater este e outros temas, sentamo-nos à mesa com o próprio, numa altura em que ameaça tornar-se um dos principais embaixadores do Techno a sul do Tejo. Substitui-se o óbvio pelo metafísico. Resgata-se da crítica o futuro. Uma entrevista reveladora feita ao promotor e artista algarvio, conduzida por Miguel Duarte para A Voz do Algarve.
MD: Com uma orientação sazonal e turística, o Algarve não é propriamente campo fértil para incursões culturais. Nesse contexto, como é que surgiu a ideia de fundar a EON, uma promotora virada para sonoridades que normalmente não associamos à região?
YH: Basicamente, tanto a ideia como o impulso são os mesmos que tive há 13 anos atrás, quando comecei a organizar eventos em Portimão. Deriva da necessidade por não existir oferta cultural. Na minha cidade, Portimão, pouco existe a esse nível, e muito menos espaços onde os artistas possam exprimir a sua arte, seja ela qual for, para além da falta de apoios. Há 13 anos atrás, quando tinha uma banda, havia também a necessidade de mostrar, e de tentar mudar um pouco também essa ideia de que o Algarve só funciona 6 meses por ano e o resto é esquecimento, deserto. Quem esteve fora, como eu, apercebe-se bem disso quando cá vem. O estilo musical em que a EON se foca tinha muita necessidade deste estímulo, principalmente na minha cidade, onde não tinha praticamente presença, ainda que tenha raízes no Algarve desde há vários anos. Então, é também um pouco contra isso que tento educar as pessoas, sobre como ser, como fazer, mas mais dentro deste estilo inovador que é o Techno.
MD: E quais as ilações que tiras deste primeiro ano de atividade? Tens alguns sucessos ou desapontamentos a destacar? Quais são, sobretudo, as maiores dificuldades que tens encontrado pelo caminho?
YH: É difícil, porque não há apoios. Mas não é que eu ande à procura de apoios, porque prefiro ser independente e não dar justificações a ninguém sobre o que estou a fazer. Sobre pontos negativos, posso dizer que o pensamento [das pessoas] não está propriamente virado para aquilo que estamos a tentar implementar na região, para a nossa visão, porque está tudo restringido à sazonalidade e à cultura comercial, e à obsessão pelo lucro dos estabelecimentos locais. Quanto a pontos positivos, apesar destes contratempos que tivemos, tem havido uma boa reação a nível do Algarve, e também começamos a ter algum reconhecimento a nível nacional, devido a estes pequenos - mas, para mim, grandes - fatores, que me levam a continuar a batalhar contra este pensamento e esta falta de apoios, principalmente na minha cidade.
MD: Sei que te tens apoiado também em artistas locais. Como é que comparas os artistas Techno da região com os do resto do país?
YH: É uma boa pergunta. Continua a existir [a ideia] de que o Algarve é para vir à praia, comer sardinhas e ver mulheres topless e de fio dental. É cómico, mas é a realidade. Existem grandes talentos na minha cidade e no Algarve. Sempre existiram. E o pessoal lá de cima tem um pouco de medo dos talentos que cá existem. Não lhes dão oportunidades. Se não formos nós a fazer as coisas - artistas locais - não conseguimos chegar a lado nenhum. E aí está: a ideia de formar a EON servia também para apoiar os talentos que existem por cá, não só a nível de Techno, mas também de House, Drum'n'Bass, etc. Eles têm talento. E se tiverem um empurrão, uma boa disciplina, uma educação, vão conseguir ir mais longe. E existem DJs que, sinceramente, são tão bons ou melhores que outros DJs a nível nacional que tocam em grandes eventos, porque têm oportunidades que o pessoal cá de baixo não tem. Porque se calhar não acreditam em nós, e talvez nem nos queiram ouvir, e muito menos levar-nos lá para cima. E este projeto da EON serve também para contrariar todo este pensamento que existe em Portugal e para pôr o Algarve outra vez no mapa.
MD: Sei também que as vossas festas não assentam exclusivamente na música. Nesse contexto, o que é que me podes dizer sobre o papel que os cenários e os locais que vocês escolhem têm nos vossos eventos?
YH: Isso é algo que sempre tive em vista. Se era para fazer um projeto como a EON, não ia apenas focar-me no plano musical, mas sim no todo, para que as pessoas que vão às nossas festas possam experienciar algo de diferente, não só a nível musical, mas também a nível visual. Por exemplo, a nossa próxima festa será num salão todo ele feito em arte barroca, os candeeiros são de cristal antigo. Ou seja, é um sítio único. E vamos potenciar isso, obviamente, com o fator visual, vamos ter videomapping e LED, para proporcionar uma verdadeira noite underground para cerca de 150 pessoas. Infelizmente não se veem muitos VJs nas festas. Um VJ é capaz de tornar a festa melhor. Porque é um complemento à música. Se for um bom VJ, ele consegue alinhar-se à música do DJ que está a tocar. E mais uma vez isto foi algo que desapareceu em Portimão. Porque quando eu era moço pequeno ia às festas de Drum'n'Bass, House e Techno, e havia sempre VJs. Mas até essa cultura começou a desaparecer. E é isso que eu quero voltar a reintegrar nas festas. É algo que toda a gente gosta.
MD: Qual é, na tua opinião, a maior dificuldade que se prende ao aproveitamento de determinados locais? Ou seja, há locais que gostarias de aproveitar, mas não o consegues fazer por algum motivo?
YH: Sim, há. Não sei se será possível ainda, em alguns deles. Para ser possível, será uma grande batalha. Aliás, ainda antes de formar a EON esta sempre foi uma visão que quis trazer para a frente, aproveitar alguns locais abandonados no Algarve e fazer umas festas pop-up, e voltar a dar a esses espaços vida, nem que seja só por uma noite, de 6 em 6 meses, ou algo do género. Tirar as pessoas da sua zona de conforto, da Praia da Rocha, que é, para mim, um sítio onde prefiro não estar... "E há muito mais cultura, por exemplo, em Alvor, onde pouca gente vai. Por isso, deixámos de apostar na Praia da Rocha precisamente por causa disso. O pensamento dessa zona é muito focado no lucro fácil. E nós derivámos agora para o centro. E por isso é difícil arranjarmos espaços. O espaço que temos agora fecha mais cedo, mas porque não? Começar mais cedo e acabar mais cedo, mas oferecer uma experiência num local único, e com pessoas que, na minha opinião, se deslocam até aí pela música, e não apenas para estarem no meio da barafunda, muitas vezes sem conhecerem os DJs.
MD: Dada a atracão que a música Techno exerce em todo o mundo, está nos vossos planos expandirem a vossa ação para além de Portimão?
YH: Sim, claro. Aliás, temos planos para uma tournée nacional. E já estamos em contacto com alguns lugares de renome no Porto. E estamos a sondar também Lisboa, e Faro, que tem mais gente e estudantes, e fica mesmo aqui ao lado. E pensamos convidar sempre um DJ internacional para essas tournées, que deverão passar a acontecer de 3 em 3 meses, e que deverão passar por vários sítios, não apenas Lisboa ou Porto. Portanto, gostaria de levar connosco não apenas os artistas da EON, mas também artistas internacionais que temos já em agenda para o próximo ano.
MD: Sabe-se que a edição de música original é um pilar fundamental para o crescimento e consolidação de qualquer projeto nesta área. A EON tem planos para lançar música original no futuro?
YH: Temos. Esse é outro dos aspetos [que tive em conta] quando criei este projeto. Pegar nos artistas locais, dar-lhes a oportunidade de tocarem, e não só isso, mas lançar também a música daqueles que apostam nessa vertente da produção. Portanto, vamos apostar no digital, mas também quero fazer edições limitadas em vinil, seja de artistas que já colaboram com a EON ou outros artistas que sejam para mim uma boa aposta. Isso seria muito interessante. E não só esses lançamentos, mas também em termos de agenciamento de artistas.
MD: E quem é o Yasha Hindine? O que move o Yasha Hindine? E o que podem artistas e parceiros esperar da tua pessoa?
YH: Essa é boa! Quem é o Yasha Hindine... Ui! Digamos que o Yasha Hindine é um dos meus heterónimos. É uma pessoa focada no mundo das artes e que tem em mente, tanto quanto possível, mudar o rumo das coisas e ajudar as pessoas mais próximas que sinta que valem a aposta. O que os artistas podem esperar do Yasha é compromisso, profissionalismo e muita dedicação, seja no que for que ele esteja envolvido, porque sempre fui e sempre serei assim. Essa é a melhor maneira. Porque lá diz o ditado, "o que não fizermos nós, ninguém o fará por nós". Por isso é que sempre fui uma pessoa independente, sempre andei de um lado para o outro, a mexer-me o máximo possível. Nem que isso implique sair seis vezes por semana à procura de um barco, como fizemos para algumas festas este verão.
MD: No passado, o Algarve chegou a ser considerado uma Meca da boa música eletrónica. Passaram por cá muitos artistas de topo, nacionais e internacionais. O que achas que falhou para chegarmos à situação atual? E o que pode ser feito para alterar esse rumo?
YH: Boa pergunta. Há 10 ou 15 anos chegavam a vir pessoas de Espanha às festas que cá se faziam. O grande problema tem a ver com os organizadores. Não eram de cá, usaram e abusaram do Algarve, e se um dia voltar a dar eles voltam também. O que tinham e aprenderam aqui levaram para cima. E por isso é que aquilo é o que é lá em cima, e nós estamos aqui meio esquecidos. E o que se pode fazer para inverter esta situação é que pessoas arrojadas, como eu, criem projetos como a EON, apostem em artistas nacionais, misturando os artistas algarvios com os artistas nacionais de topo. Porque sabemos que se pusermos uma pessoa bem conhecida a nível nacional no nosso cartaz, tudo isso tem um efeito de arrasto em termos de shares e difusão, e é benéfico para os artistas de cá fazerem parte do cartaz. Se não existir essa interligação entre artistas algarvios e de fora será difícil que o Algarve volte a ser o que era, porque é necessária uma base interna e credível que promova aqui o estilo o ano todo. E a EON fará todos os possíveis nesse sentido, mas seria bom que existissem outros projetos em Faro ou em Lagos, não apenas de forma sazonal, mas o ano todo. Caso contrário não saímos disto: chega o verão, vêm os de cima rapinar o que cá temos, e quando a praia fecha pisgam-se. Como certas discotecas por aí.
MD: A maioria das pessoas tende a associar o DJ-ing a uma série de estereótipos que não têm nada a ver com o que estás a fazer. Como pretendes traçar a distinção entre a EON e a torrente de eventos que neste momento inundam o país?
YH: Através da qualidade musical e dos artistas que trazemos e iremos trazer. Através da experiência que oferecemos ao público que vem aos nossos eventos. Educação, principalmente. Porque o estilo que praticamos na EON pode ser Techno, mas não é um Techno vadio... Algumas variantes do Techno, hoje em dia, são por vezes associadas a música muito acelerada. E isso não tem nada a ver com os nossos eventos. Somos inovadores, vanguardistas e urbanos. E é por aí que vamos marcar a diferença em relação a outros projetos e DJs que existem por aqui. Nós somos muito específicos e seletivos com os artistas que convidamos, mas também em termos visuais e decorativos, em tudo. Temos uma grande preocupação em diferenciarmo-nos dos outros.
MD: Mas não concordas que, com o crescimento da indústria digital e do mercado da informação, as coisas se confundem facilmente? Não achas por isso da maior importância a produção de conteúdos originais associados a uma série de valores inegociáveis?
YH: Concordo plenamente. Basicamente, devido ao que existe hoje em dia em matéria de digital, qualquer um pensa que pode ser DJ ou produzir. Obviamente que, por um lado, é bom que existam todas essas ferramentas. Mas há que fazer a distinção entre o que é bom e tem qualidade, e o que se limita a repetir ideias feitas. E nós somos muito cuidadosos com quem convidamos para tocar nos nossos eventos. Para nós é muito importante que o artista tenha a sua identidade, porque sem isso não pode haver evolução musical.
MD: A música Techno, e a eletrónica no geral, movimenta muito dinheiro e multidões em todo o mundo. Para o bem e para o mal, o Techno tem sido sobretudo uma questão de paixão e dedicação, mantendo-se à margem de interesses corporativos, e gerando por isso uma sonoridade pioneira e cativante, capaz de moldar mentes e definir o futuro. Mas é também por isso um mundo fechado. Não pensas que o ambiente de compadrio e amiguismo que se vive nesta área acaba por ser um obstáculo à própria sobrevivência e regeneração do Techno?
YH: Concordo plenamente com o que disseste. Porque, infelizmente, principalmente para nós algarvios, isso sempre foi um problema. E mesmo 13 anos depois de ter tido a minha banda verifico que não existiu evolução nenhuma e que o problema continua a existir. Digamos que quando conhecemos a pessoa certa, há oportunidades, somos lançados, há cunhas, e penso que isso é um lado muito negativo, porque se reflete por vezes na falta de qualidade, mesmo numa indústria underground.
MD: Não achas que seria necessária uma abordagem um pouco mais ambiciosa e objetiva?
YH: Claramente! Da parte de todos nós. Sejam promotores, sejam donos de editoras, ou mesmo artistas, nós temos de encarar isto com muito mais profissionalismo e não fechar a porta a novos talentos por serem daqui ou dali. Eu próprio sofro na pele dentro do sector das artes visuais. Há pessoas que não acreditam [em mim] porque sou algarvio e português e eles são da Alemanha ou do Japão. Entre um português e um inglês, escolhem o inglês, porque traz com ele uma reputação histórica. Em matéria de produtores, estamos a falar de grandes talentos que nunca tiveram uma oportunidade, e nunca a terão, porque as portas estão fechadas pelo preconceito.
MD: Mas não achas que mesmo em Portugal há um enorme potencial por explorar, e que não é explorado devido, talvez, à visão estreita e tacanha como se olha para este negócio?
YH: Obviamente! Totalmente de acordo. Existem muitos talentos em Portugal que, não estando bem posicionados, saem prejudicados. É a existência da própria indústria [do Techno] que é posta em causa!
MD: Ou seja, não acreditas que artistas, por terem nascido em Lisboa ou no Porto, tenham direito a uma credibilidade instantânea... Voltando um pouco ao início, como é que vês o surgimento na cena de tantos DJs e produtores dessas zonas, cuja qualidade deixa muitas vezes a desejar?
YH: Isso é bem real. Isso deve-se também às editoras estarem situadas mais a norte e ao centro. Ou seja, restringem-se um pouco, porque o que está ali ao lado é-lhes mais conveniente. Não perdem tempo na caça de talentos.
MD: Mas não achas que é um pouco paradoxal, na geração do digital, que editoras que se auto-denominam guardiãs de uma música global só abram as portas aos primos ou aos vizinhos do lado, como vemos acontecer tantas vezes?
YH: Normal é que isso não é! E só se prejudicam a eles próprios. Porque podem estar agora no auge, podem estar a "bombar" muito, mas as pessoas, mais cedo ou mais tarde, são educadas numa exigência cada vez maior.
MD: Até porque as maiores editoras do estrangeiro baseiam o seu sucesso em portfolios de artistas muito diversos nas suas origens. E nós, se calhar, vemos as coisas de uma forma um pouco diferente, não?
YH: Infelizmente, é.
MD: Últimas perguntas. Onde vês a EON chegar daqui a um ano?
YH: Se tudo corresse como eu quero, daqui a um ano voltávamos a conversar e muita coisa já tinha acontecido. Lançamentos, artistas internacionais que tenho em mente, e talvez um mini-festival de um dia, que estou a ponderar fazer no futuro. Mas durante o próximo ano vamos procurar mais oportunidades para a EON, em termos de licenças, locais ou apoios. É acreditar no que estamos a fazer e principalmente nos artistas que colaboram connosco. Mas, no mínimo, acredito que teremos o dobro da dimensão que temos atualmente, e maior expansão a nível nacional. O que é preciso é continuar e ter muita persistência.
MD: E daqui a 10 anos?
YH: Ui! Não bastava um ano? (risos) Daqui a 10 anos... É uma boa pergunta. Daqui a 10 anos vejo a EON como um projeto estabelecido a nível nacional, e também internacional, já tendo no seu catálogo uns belos lançamentos, principalmente com artistas nacionais, porque é esse o objetivo do nosso projeto. Daqui a 10 anos vejo a EON a organizar já um festival anual de dois ou três dias, com artistas de renome mundial, onde, naturalmente, não faltarão experiências únicas para todas as pessoas, mas tendo sempre uma coisa em mente: qualidade acima de tudo! E nunca fechar portas às pessoas que entram em contacto connosco, porque nunca o fizemos nem o faremos. Sejam 10 ou 50 anos, o nosso pensamento será sempre o mesmo.
Por: Miguel Duarte Fotos: Mariana Teodósio