Horácio Ferreira e João Chagas
RECORDAMOS ...Entrevista com Horácio Ferreira e João Chagas | Culto à Mãe Soberana

11:07 - 15/04/2016 LOULÉ
Horácio Ferreira, homem do andor da Mãe Soberana durante 40 anos, e João Chagas, historiador e que conhece a história da Mãe Soberana ao pormenor, foram os convidados do programa «Olha Que Dois», com Nathalie Dias e Victor Gonçalves.

O Horácio Ferreira é há 40 anos um dos homens do andor. Nunca lhe deu vontade de se retirar dando lugar aos mais novos?

Horácio Ferreira – Há cerca de 40 anos que a Mãe Soberana me deu a felicidade de ser o homem do andor e não tinha vontade nenhuma de me retirar, mas a vida é assim e este ano já não faço parte. Ou melhor, não faço parte de baixo mas faço parte ao lado porque passei do homem do andor a tocha, fui despromovido. É com carinho e gratidão que os homens do andor me dão a prenda da tocha. A tocha são as duas colunas, os dois homens que vão à frente e que são os orientadores do andor. Quando um homem diz que se vai em passo trocado, somos nós que confirmamos e dizemos para acertar o passo. O andor de Nossa Senhora da Piedade é a figura central da festa e merece ir com alguma dignidade e postura nesse evento e nós somos os guias, visto que quem vai de baixo não tem a noção se vai tordo ou direito. Portanto, a tocha serve exatamente para ser um complemento e uma ajuda ao andor.

 

Quantos elementos levam o andor ao ombro?

H.F. – São oito homens e os dois tochas.

 

Há outros de reserva no caso de ser necessário substituir algum?

H.F. – Não. Se acontecer alguma coisa a um, distribuem por sete e se acontecer a dois distribuem por seis. Nós e eu, como homem do andor, sempre acreditei que a Mãe Soberana punha a mão por cima e não deixará nenhum filho ficar mal.

 

Como são escolhidos os homens do andor?

H.F. – Não há nenhum caderno de encargos que diga o que é o homem do andor ou quais as características que tem que ter. Cada um tem que sentir o desejo forte de ser o homem do andor e quem elege os escolhidos tem que encontrar características físicas que se adequem. Há que haver harmonia entre a vontade de ser andor e o físico. O que se pretende são homens simples, que tenham algumas características de humildade, que respeitem e sejam amigos da família, coisas que o distinguem dentro da sociedade.

 

Quantos quilos pesa o andor?

H.F. – Fala-se em 20 ou 30 arrobas, mas deve andar entre os 300 e os 400 quilos. Dentro de algum tempo saberemos qual é o peso exato do andor. Mas o peso não interessa porque há momentos em que eu talvez leve zero e outros em que tenho em cima 80 ou 90 quilos e é por isso que eu dizia que o homem do andor tem de ser humilde e honesto porque o peso é distribuído em função do que cada um acha que pode carregar. São oito irmãos que ali vão, se um vacilar os outros têm que dar uma ajuda. Estamos entregues a nós próprios a partir do momento que colocamos o andor aos ombros. A Nossa Senhor está entregue aos oito e os oito estão entregues a Nossa Senhora.

 

Levam algum colete especial com almofadas nos ombros?

H.F. – Não. Levamos a almofada que vai no varal do andor.

 

E há trocas de ombro durante o percurso?

H.F. – Não. Eu posso contar um episódio que é giro e que se passou comigo. O meu avô, que estava no Canadá quando eu fui escolhido para levar o andor, aos 19 anos, escreveu-me uma carta com três recomendações: a primeira e principal era que eu devia pegar no andor com o ombro do erro, que é aquele que aguenta mais, que no meu caso é o ombro direito; a segunda era não falar muito quando vamos a caminhar porque o ar faz falta quer quando se está a subir ou descer; e entrar na festa, ouvir as vivas à Mãe Soberana, ao homem do andor e levantar o forcado, a mão que vai livre. Outra coisa que ele também me dizia era que, quando estivesse a subir, nunca olhasse para o bico do serro porque podia assustar. Quando vamos em estradas e caminhos passamos por várias fases: a primeira é a da dor, a segunda é a da dormência, a ansiedade de chegar ao fim e depois começa o cansaço. Como o meu amigo João Chagas costuma dizer, nós desfrutamos da Mãe Soberana, o que é importante e uma máxima para os homens do andor.

 

Qual é a distância entre o local onde se inicia o cortejo e a Ermida?

H.F. - É capaz de andar na casa do quilómetro e meio e de ladeira temos entre 300 a 310 metros, com uma inclinação de 15%.

 

Quem leva a água?

H.F. – Ninguém. Eu não bebo água, mas pode haver quem beba, não é proibido (risos). Pode meter água para dentro mas não pode meter água para fora.

 

É na subida da calçada que as coisas se complicam. Não dá para tomar balanço porque é a subir, mas devem ranger os dentes, dando tudo por tudo até à chegada triunfal à Ermida. Qual é a sensação após a missão cumprida?

H.F. – Ui, não lhe consigo explicar. É uma sensação de gratidão à Mãe Soberana por nos ter feito concretizar este desejo que vai dentro de cada um. A chegada, o carinho das pessoas e, como diz o meu primo António, o “lencinho acenando e as lágrimas a correr”. Toda esta envolvência é necessária para a Festa da Mãe Soberana. Por vezes, fico preocupado quando dizem que deveríamos reservar espaços entre as pessoas e os homens do andor porque tenho receio que se crie um afastamento e que nós percamos o calor das pessoas que ali estão. Eu passei muito tempo fora de Loulé e quando voltei, logo no primeiro ano, fui pegar no andor e pensei que era um estranho e que ninguém me conhecia, mas quando dobro a Cruz Grande e entro no Funil, a ladeira onde ela estreita, começo a ouvir um indivíduo a dizer “vamos embora Horácio” e só depois percebi que era um amigo e hoje colega da tocha.

 

 Já agora, quantos dias ficam de molho na banheira a recuperar do esforço?

H.F. – Nenhum. A seguir à festa nós começamos uma segunda festa para o homem do andor, para comemorar o êxito da festa e tudo ter corrido bem e gritamos à Mãe Soberana com quantos pulmões temos.

 

O João Chagas Aleixo diz ser um louletano, mas de Lisboa. O que quer dizer com isso?

João Chagas – Nasci em Lisboa, com 18 dias vim morar para Loulé e desde então tenho ficado por cá, com alguns períodos de estudo e trabalho fora. Considero-me um louletano pleno e tento fazê-lo com L grande.

 

Como mestre em História, investigador, consultor científico e coautor do processo de inventariação da manifestação religiosa da Mãe Soberana, saberá como poucos algumas estórias para nos contar. O que está inventariado sobre a religiosidade da manifestação da “Mãe Soberana”? 

J.C. – Este processo de inventariar foi uma parceria entre a paróquia de São Sebastião e a Câmara Municipal de Loulé, no sentido de eu, juntamente com algumas técnicas da Câmara e coordenação científica da antropóloga Vanessa Cantinho de Jesus, criarmos um dossiê, que depois seria submetido à Direção Geral do Património Cultural (DGPC) no sentido de colocar a manifestação religiosa da Mãe Soberana como Património Cultural e Imaterial de Portugal. A partir daí, e depois da DGPC aceitar esta candidatura, é que se poderá pensar na candidatura da festa a Património Cultural e Imaterial da UNESCO.

 

Pode explicar-nos o que é, para si, “A Força do Andor”?

J.C. – “A Força do Andor” foi o título que duas colegas minhas, uma antropóloga e outra cineasta, deram a uma exposição com algumas obras, exibida no ano passado no Convento de Santo António. Elas estão também a realizar um documentário antropológico sobre os homens do andor, começado em 2012.

 

Um historiador é, normalmente, um bom contador de estórias. Porque será que a Nossa Senhora da Piedade tem tanto peso na religiosidade dos louletanos?

J.C. – Eu já fiz essa pergunta várias vezes e não consegui ainda encontrar resposta. No sábado, na apresentação do Património Cultural Imaterial (PCI) aos louletanos, entre as várias coisas que disse há uma para a qual não consigo encontrar resposta. Supondo que o culto e a ermida foram construídos em 1553, em 1605 a Câmara Municipal de Loulé, entidade que na altura administrava a parte mais visível do culto – a procissão – já decretava em reunião de vereação, o que é comprovado no livro-datas da vereação de 1605, que a imagem de Nossa Senhora da Piedade viesse para Loulé em procissão extraordinária para as preces, para pedir chuva para os campos. Agora, o que eu me interrogo é que, nessa altura já existiam cinco virgens em Loulé: Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Pilar, Nossa Senhora das Portas do Céu, Nossa Senhora dos Pobres e a Nossa Senhora do Carmo. Estavam todas sediadas em Loulé, mas mesmo assim a Câmara sentia a necessidade de ir buscar a Nossa Senhora da Piedade. Nessa altura, a freguesia de São Sebastião não estava tão desenvolvida, povoada e alargada e é, aliás, de 1890, por isso, nessa altura, só havia São Clemente. Mas a pergunta que eu faço é mesmo essa: com cinco virgens em Loulé, por que motivo a Câmara ainda sentia a necessidade de ir buscar a Nossa Senhora da Piedade? Neste momento estão agendadas seis procissões extraordinárias, por tanto a vinda, decretada em reunião de vereação, da Nossa Senhora da Piedade para o Convento de Santo António ou para a Igreja Matriz de São Clemente por vários motivos: ou porque a rainha D.ª Maria II casou, ou porque houve um tremor de terra ou ainda, e mais recente, para pedir chuva para os campos.

 

Essa religiosidade começou há quantos anos? Onde era praticado esse culto e já nessa altura havia homens do andor como há agora?

J.C. – Não. A documentação mais antiga refere que o culto ou a edificação da ermida data de 1553. A imagem, segundo o meu colega Francisco Lameira, data da segunda metade do século XVI ou princípios do século XVII, ou seja, princípios de 1600. Em relação ao culto há várias teses, uma delas do professor José Armando Saraiva, que eu não partilho, e também eu tenho desenvolvido ao longo dos anos uma tese que diz que o culto, a edificação da ermida e a encomenda da imagem terá sido obra dos frades franciscanos que, em 1546, habitaram o Convento de Santo António. Esta tese assenta em cinco pontos. Ao longo do século XVI, alguns lugares de peregrinação dedicados à virgem tiveram um impulso sobre a iniciativa de membros de ordens religiosas que propagaram a devoção por determinadas evocações marianas como foi o caso, por exemplo, da Nossa Senhora do Carmo da Penha, em Guimarães. Por outro lado, sabemos que em 1500 os frades franciscanos, capuchos ou observantes, fundaram em Portugal a Província da Piedade, que tinha todos os conventos franciscanos situados no Alentejo e no Algarve, e o restante território nacional era a Província da Soledade. Foram os frades franciscanos os introdutores e principais divulgadores do culto a Nossa Senhora da Piedade em Portugal. O terceiro fator é a proximidade temporal. Sabe-se que o Convento de Santo António foi construído em 1546 e a ermida em 1553, apenas sete anos de diferença. Outro fator é a convecção viária e visual entre os dois templos, que estão no mesmo horizonte visual, mesmo o primitivo que eram 300 metros abaixo deste. A documentação, nomeadamente as visitações da ordem de Santiago às igrejas do Concelho de Loulé, referem que os frades do convento ofereceram vestimentas e várias alfaias religiosas para dotar a ermida de instrumentos que até então não tinha. Tudo isto me leva a pressupor, com grande certeza e convicção, que a ermida e a imagem tiverem o seu início com os franciscanos que vieram habitar o convento apenas sete anos antes.

 

Há quem diga que os mais novos não são tão próximos da religião como antigamente, mas o facto é que se veem muitos, ano após ano, a acompanhar a Mãe Soberana. Isso terá a ver com os tempos que atravessamos?

J.C. – Isso é mais do domínio da antropologia e sociologia, mas nunca foi feito nenhum estudo sobre isso. Eu tenho as minha próprias ideias, mas não são sustentadas cientificamente porque eu nunca trabalhei essa temática, mas penso que a introdução, em 1998, do João Matos Lima, muito popular em Loulé, como homem do andor foi um fator agregador. O João entrou com 28 anos e eu, enquanto observador de fora da festa, noto que a sua entrada trouxe popularidade e a sua força criou aquilo que eu chamo “fator Matos Lima”, que é a introdução e chamada para a festa da geração à volta dos 30 anos, que até aí não ia à festa e estava completamente afastada. Pelo simples facto de ele começar a transportar o andor, conseguiu trazer essas pessoas para a festa, o que também é aplicável para outros homens do andor.

 

O facto de a cerimónia integrar a Banda dos Artistas de Minerva e a música, ajuda a mitigar animicamente o esforço dos homens do andor?

J.C. – Há uma estória oral, que eu nunca consegui comprovar, que uma tia-avó minha me contava. Esta tia-avó tinha sido colega de conservatório e tinha nascido apenas um ano antes da pianista Maria Campina e foi pianista e professora no Conservatório de Faro durante mais de 50 anos, tendo o próprio pai, o meu bisavô, feito parte de várias direções. Eu sempre ouvi lá em casa uma história que diz que na altura em que a marcha da Nossa Senhora da Piedade foi testada, foram testadas três marchas. Ou seja, o mestre Manuel Martins Campina, que foi maestro da música velha entre 1866 e 1896, terá composto três marchas processionais. Essas marchas foram experimentadas na subida com os homens do andor e chegou-se à conclusão que a marcha que tinha mais folgo, compasso e energia era esta. Entre 1866 e, seguramente, 1876, esta marcha foi composta e introduzida na Festa da Mãe Soberana.

 

O João Chagas, aquando de uma visita ao Arquivo Distrital de Faro na busca de documentos relacionados com os trabalhos de investigação sobre a “Mãe Soberana”, disse que lhe tinha saído a sorte grande quando encontrou o que desejava. Que documentação ou informação era essa?

J.C. – Não encontrei a sorte grande. Para a minha tese de mestrado, trabalhei em quatro arquivos: no paroquial, que se encontra na Igreja de São Francisco; no municipal de Loulé; no distrital, em Faro; e no arquivo diocesano. A investigação que eu tenho desenvolvido e publicado baseia-se nesses documentos, que me permite fazer as perguntas e tentar justificá-las, encontrar a resposta. Não encontrando a resposta nos documentos, o historiador tem de ter a criatividade de colocar hipóteses interpretativas. Há muitas questões da Mãe Soberana que eu coloco hipóteses interpretativas.

 

Já havia intriga política nas Festas da Piedade de 1914?

J.C. – Antes. Em 1893 houve o rapto da imagem, na Primeira República, e nas festas 1912, 1913 e 1914 eram normal as bengaladas, cajadadas, feridos, cuspidelas, inclusive do Presidente da Câmara ao administrador do concelho e, em 1912, ao Procurador-Geral da República, João Crisóstomo, que veio de propósito de Lisboa para assistir à festa. Mas a intriga política terá começado ainda na monarquia constitucional, em 1893, quando membros afetos ao Partido Progressista, que tinha acabado de perder as eleições em janeiro, foram raptar a imagem à ermida e a trouxeram para a Igreja de São Francisco, justamente com o objetivo de criar dificuldades à vereação recém-eleita, o Partido Regenerador. Houve muita confusão e só o bispo pôs termo à contenta, sendo que o árbitro na altura era precisamente o bispo do Algarve. A Primeira República foi, sem dúvida, o período com mais intriga política, não houve nenhum ano em que não houvesse bengaladas, isto porque os republicanos, num gesto ofensivo, assistiam à procissão e ao sermão cobertos, com o chapéu na cabeça. Qualquer “mãe sobraneiro”, como eu lhes costumo chamar, que visse isso, que é uma falta de educação, dava-lhe logo com o que tivesse à mão, fosse uma bengalada ou, no caso dos agricultores que não tinham uma bengala à mão, mandavam umas cuspidelas para compor o ramalhete.

 

No dia 24 de Março de 1913, um dia após uma ocorrência, o Ministério Público decide abrir um processo judicial, no Tribunal Judicial da Comarca de Loulé, para apurar as responsabilidades dos incidentes ocorridos na véspera, aquando da Festa Pequena, celebrada em honra de Nossa Senhora da Piedade. No auto de acusação pode ser lido o seguinte: «José Martins Seruca, casado, industrial, residente em Loulé, vem participar a V. Exa. que ontem, 23, quando pelas 18 horas a imagem da Piedade era conduzida em procissão da sua capela para a igreja paroquial de São Sebastião, e ao passar pelo campo destinado á feira, que nesta vila se realiza em Agosto». Alguém se aproveitava desta festa para acertar contas com quem não gostava?

J.C. – Acertar contas acontecia mais no carnaval. Sabe-se hoje, e é por isso que o carnaval civilizado foi criado, que até 1906 as pessoas andarem mascaradas em Loulé era um fator que ajudava a acertar contas. Na Festa da Mãe Soberana penso que não. Esse caso que cita, que eu também estudei e publiquei material sobre ele, foi justamente uma cajadada em frente ao Convento de Santo António. Na Festa Pequena, vinha em passo apressado para a Igreja de São Francisco e houve quem começasse a gritar “vivas” à República e ao Dr.º Afonso Costa e o agricultor de Loulé, com 41 anos e pai de sete filhos, deu umas valentes cajadadas na mão desse republicano, tendo-lhe partido a mão e rasgado o braço. A pena que o juiz atribuiu foi que, enquanto essa pessoa não pudesse trabalhar, o réu teria que pagar a sua jorna diária.

 

Esta entrevista foi realizada por Nathalie Dias e Vítor Gonçalves no Programa “Olha que Dois”, uma parceria da “Total FM” com “A Voz de Loulé” emitido no dia 6 de abril.

Oiça aqui esta entrevista.

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