Ricardo Cabeços, em Roraima (planalto) subido pela Venezuela cruza com três países: Venezuela, Brasil e Guiana Francesa.
ENTREVISTA | Ricardo Cabeços, um arquiteto louletano, percorreu o mundo de mochila às costas, bebendo arquitetura até chegar ao Brasil…

13:21 - 07/03/2016 LOULÉ
Licenciado em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade Técnica de Lisboa, que frequentou entre 1999-2005, saindo pela porta maior como o melhor aluno do seu Curso, Ricardo Cabeços, nunca mais deixou de completar os seus sonhos, tendo sempre por missão conhecer o mundo e a sua arquitetura e, desta forma, criar uma enorme paixão pelo conhecimento não apenas das novas tendências e nos permanentes desafios da arquitetura, mas também beber a cultura e o património arquitetónico de todo o mundo.

Em 2009, pouco mais de três anos após ter concluído o seu curso, Ricardo Cabeços percorre o mundo de mochila às costas, locais e momentos, ainda que retratados como minguadas pingas de chuva, damos a conhecer noutro espaço da nossa conversa, com este arquiteto de Loulé, hoje no Brasil, onde começa a deixar a sua marca, inclusive na própria atividade desportiva.

Antes porém, importa definir um pouco do carácter de Ricardo Cabeços feito de aventuras, viagens e uma enorme paixão pelos próprios valores da humanidade.

Criativo, comprometido e empreendedor. Inicia a sua «atividade profissional» se assim se pode interpretar, em 2000, pois, embora a frequentar o segundo ano de arquitetura, tem o primeiro contacto, numa espécie de estágio, num escritório de arquitetura em Portugal.

O seu excelente e premiado desempenho académico leva-o profissionalmente a Barcelona, em Espanha, Fukuoka e Tokyo no Japão, Moçambique e Angola, em África, e ao Rio de Janeiro, no Brasil, trabalhando em diversas áreas e escalas de projeto.

Paralelamente, num misto de curiosidade e aventura viaja pelo resto do mundo em busca e compreensão dos mesmos valores humanos e contextualizados com que lê, entende e pratica arquitetura nos dias de hoje.

Consciente de um trabalho de equipa, afirma-se como arquiteto da génese do conceito de projeto até à execução prática em obra, interagindo desde o cliente aos operários “ in loco” com uma filosofia pragmática de resolver bem, dentro de um cronograma e orçamento.

Com obra produzida e em desenvolvimento em Portugal, Angola, Moçambique e Brasil, Ricardo Cabeços está baseado no Rio de Janeiro. E é aqui que começa a nossa conversa com Ricardo Cabeços:

- “Aterrei no Rio de Janeiro no dia 6 de janeiro de 2006, com uma mochila às costas, laptop e portfolio debaixo de um braço, prancha no outro. O plano inicial era ficar no Rio apenas alguns dias e seguir viagem para Florianópolis, onde procuraria um escritório para fazer o meu estágio para a Ordem dos arquitetos. Floripa acabou por ser uma breve passagem. Quem me seduziu foi mesmo o Rio e dez anos depois aqui estamos.”

 

A Voz do Algarve - O que é que tens feito como arquitecto, visando a grande revolução e o empreendedorismo, tendo como imperativo o Campeonato do Mundo, Jogos Olímpicos e outros?

Ricardo Cabeços – Nos primeiros anos trabalhei maioritariamente em projetos de Shopping Centers, num escritório bastante conceituado aqui no Rio. Por volta de 2007/2008 comecei a enveredar pelos projetos residenciais e de hotelaria de alto padrão, essencialmente no Algarve, Angola e Moçambique, onde vim a morar em 2009/2010.

Considero este período muito marcante na minha definição como arquiteto, pois estava a conseguir viajar para lugares exóticos e projetar e construir nestes cenários.

Em 2010 volto para o Rio de Janeiro, convidado pela 1ª empresa onde trabalhei, para trabalhar nos projetos da Copa do Mundo 2014, mais especificamente, no Estádio Itaquera, em São Paulo, e em 2012 junto-me à equipe do arqtº. Daniel Gusmão, para os projetos do Parque Olímpico, mais concretamente no Velódromo e em vários projetos de Hotéis, como o Holliday Inn, Marriot...

O Rio estava a ferver de trabalho nesta altura. Tinha de coordenar uma equipe internacional mista de nacionalidade brasileira, portuguesa, francesa, americana, espanhola, marroquina... O escritório não parava de crescer e os trabalhos cada vez melhores. Em paralelo continuava sempre a desenvolver os meus próprios projetos e obras de pequeno e médio porte em Portugal e no Brasil. Foi um período muito intenso de trabalho.

Atualmente a situação do Brasil é muito distinta, e de certa forma, faz lembrar o fatídico ano de 2008/09 quando entrámos em crise em Portugal. Os projetos novos pararam e muitos dos projetos em andamento congelaram. Éramos vinte arquitetos em 2012, hoje somos cinco. A inflação e as taxas de juro altas combinadas com um clima de instabilidade política estão a provocar um panorama profissional muito pessimista e travado. É preciso focar no essencial e continuar no ativo. Nunca parar. Produzir, Acreditar, Cair e levantar de novo “bola pra frente”.

 

V.A. – O facto de teres percorrido o Mundo de Mochila às costas…trouxe outro olhar sobre a arquitetura? Porquê?

R.C. – A viagem é/deve ser uma manifestação humana, um estado de espírito em que nos colocamos como observadores de outras culturas, outras pessoas, outras paisagens e colhemos e digerimos essas informações, ouvimos novos sons, provamos novas comidas, cheiramos novos aromas, conhecemos novas realidades... numa tentativa de identificar denominadores comuns, de compreender melhor o mundo. O viajante é o estado mais sensível de todos nós, aquele que admira, que ouve, que prova, que toca, que sente.

A arquitetura é uma arte humana, ela é feita por pessoas para pessoas, num local, numa data e num contexto. O fator perene da arquitetura atribui-lhe a grande responsabilidade de respeitar e celebrar estes fatores (contexto, memória, lugar), ao mesmo tempo em que protege o ser humano das intempéries, oferece um enquadramento especial da paisagem, garante o silêncio para dormirmos em paz, a luz ideal para jantar ou trabalhar, a textura ideal para andar descalço... enfim os ingredientes básicos, mas essenciais para vivermos melhor. Cada projeto é uma viagem a um destino que ainda não existe.

 

V.A. – O que é que faz um arquiteto português, algarvio de Loulé, no Brasil?

R.C. – Acordo cedo, tomo pequeno-almoço, faço desporto, vou trabalhar com a cabeça cheia de preocupações “tenho de ligar para tal pessoa, responder aquele email, acabar aquele desenho, fazer aquilo, reunião com o outro, pagar aquela conta...ah! não me posso esquecer de...” e pouco depois percebo que são 20h e tenho de voltar pra casa pra dar banho e deitar o bebé, o meu João Pedro, seis meses, e passar tempo com a minha família... Acho que é uma vida adulta normal, só que noutro lugar.

 

V.A. – Fizeste parte da vida do Clube de Ténis de Loulé e agora é campeão de Squash no Brasil… Esta tua participação e conquista de título no Squash brasileiro é um hobby ou uma manifestação competitiva?

R.C. – Sem dúvida, os dois. Joguei muito ténis até aos 18 anos no Clube de Ténis de Loulé. Sempre fui hábil de raquetes, pés nem por isso... Joguei muito Ténis de Mesa, joguei Badminton no Japão, Frescobol nas praias do Rio e agora, mais recentemente, jogo Squash.

Experimentei no Algarve, mas foi em 2011, no Rio, que comecei a ter aulas, a entrar em torneios e a evoluir a cada ano. Claro que o espírito competitivo me fez querer evoluir, mas o Squash, o “boxe” da família dos desportos de raquetes é onde consegui encontrar o melhor equilíbrio de queimar calorias, queimar stress, fortalecer o corpo e mente e fazer grandes amizades. Quem conhece o desporto sabe a intensidade, foco e resiliência que requer. É viciante. No final de contas, o Squash faz-me uma pessoa melhor, traz-me a minha paz interna. Mens sana in corpore sano.

 

V.A. – Até onde esperas chegar?

R.C. – Este ano foi sem dúvida marcante a nível de resultados. Ganhei 5 das 7 etapas do Circuito Estadual de Squash Amador do Rio de Janeiro em que participei e ganhei recentemente a 2ª Classe Amadora do Campeonato Brasileiro de Squash, em João Pessoa, na Paraíba. Acho que fui o 1º atleta não brasileiro a fazê-lo. Treinei bastante, dentro e fora do court e fui bastante focado para o torneio.

Agora já estou a jogar a 1ª Classe Amadora, o último degrau antes do Circuito Profissional, mas ainda tenho muito que batalhar para dar luta a estes gladiadores. Espero em 2016 bater-me de igual para igual com os top 5 do Ranking Estadual. Neste momento estou em 10º. Quero também jogar um torneio em Portugal, talvez em 2016, para ver onde estou.

 

V.A. – Nos projetos desportivos e na arquitetura?

R.C. – Na arquitetura a meta é mais projetos construídos. A arquitetura é a minha profissão, e sinceramente não me vejo ser outra coisa, mas os resultados são a muito longo prazo. É preciso, pois, ter muita paciência e resiliência. Grande parte dos projetos em que investimos todo o nosso ímpeto, não são realizados.

O meu desejo, e anual caminho, é ficar cada vez mais no atendimento ao cliente e no detalhe de soluções com recurso ao desenho à mão, a melhor e mais eficiente ferramenta que o arquiteto possui. Acho que estou num caminho mais analógico, mais humano. O desenho à mão é muito mais rico e sugestivo para se projetar. O computador surge numa fase posterior, para consolidar um pensamento que já foi digerido e preparar apresentações e os desenhos de comunicação à obra.

 

V.A. – O louletano também tem a capacidade de ir para o desconhecido. Quem conhece o mundo sabe que o Algarve e o País são um paraíso… A tua ida para o Brasil será um pouco da cultura louletana pela descoberta do mundo?

R.C. – O Louletano, o Algarvio, o Português em geral têm uma tradição e passado de simplesmente ir. Seja por ordem da Coroa, fuga, curiosidade ou necessidade de o fazer, o Português sempre foi. Foi e continua a ir para os lugares mais recônditos sem olhar para trás. Admiro muito isso nos nossos compatriotas, essa capacidade de ir para o desconhecido e instalar-se lá, mesclar-se, fazer filhos, ter netos e dar nomes as ruas em Macau, Sri Lanka, Brasil ou África do Sul. As outras nacionalidades não o fazem, os franceses não o fizeram, os ingleses ou alemães muito menos.

Portugal e o Algarve são um paraíso, sempre foram, e penso que hoje estão com um vigor, uma publicidade e uma projeção externa que dão gosto de assistir. Um prenúncio de que bons tempos se avizinham. Quem sabe... Aliás, quem quiser acompanhar o meu dia-a-dia, só tem que me encontrar no meu Instagram (www.instagram.com/rcabecos/)

 

Por Neto Gomes 

 

 

Pelo Caminho mais longo

Uma viagem de Portugal à Índia, de comboio…

Retalhos da viagem…

 

Dia 44: 15 julho de 2009 – Lago Ugii para Lun, Mongólia

«Acordamos na margem do Lago Ugii, a uns 200 km a Oeste de Ulan Bator.

Arrumamos a tenda enquanto o Batai, o nosso guia Mongol, um estudante de Gestão de Ulan Bator, nos prepara um pequeno almoço. Comemos em frente ao lago, sob um céu cinzento e uma paisagem completamente verde.

Seguimos para Este, em direção a Lun, por uma auto estrada Mongol, ou seja um vale com vários quilómetros de largura onde carros, camiões, motas e gado circulam livremente por caminhos de terra batida ou simplesmente descampado.

Paramos em Dashinchilen, uma “cidade” que me faz lembrar o Wild West retratado nos filmes Norte Americanos de cowboys: uma única rua de terra batida e areia, casas de madeira, um mini mercado, um bar com uma mesa de snooker no exterior, cavalos amarrados e algumas motos. O nosso jipe é o único carro na cidade (…)»

 

Dia 61: 1 agosto de 2009 – PyongYang, Coreia do Norte para Dandong, China

«Após o controle de fronteira em Sinuiju, Coreia do Norte cruzamos o Rio Yalu para Dandong, China. O sentimento é, e nunca o esperaria, de alívio de chegar à China. Alívio de voltar a ser um ser vivo, livre e com direito a pensar e expressar esse mesmo pensamento.

Em viagem existem aqueles momentos chave, sejam eles no princípio, meio, fim ou mesmo pós viagem (o que é mais comum em viagens de curta duração) em que percebemos que todo o esforço, todo o dinheiro gasto, todos os recursos dispensados para a realização da mesma foram pagos, foram repostos com uma experiência única e inigualável. A Coreia do Norte representou esse equilíbrio nesta viagem... E embora ainda tenha mais dois meses “de estrada” pela frente, tudo o que vier será um acrescento. A viagem está paga!

Uma semana na Coreia do Norte foi o suficiente e, o máximo que recomendo, para visitar o que é o país mais hermeticamente fechado do mundo e da realidade como a conhecemos (…)»

 

Dia 71: 11 agosto de 2009 – Lago Karakul, Xinjiang, China

«Acordo às 7h com uma melodia que tem tanto de familiar como de distante, um toque de telemóvel. Há tanto tempo que não tenho telefone que simplesmente já não me lembrava da existência dos mesmos e do quanto comprometem a nossa liberdade. É o telemóvel do João Pedro, um amigo de longa data que vive na China há mais de dois anos. Fomos ter com ele a Shanghai, onde vive e trabalha. Tirou uma semana de férias para irmos juntos para Xinjiang, a província mais ocidental da China, conhecida como a nova fronteira, o portal de acesso a países como o Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão e Paquistão.(…)»

 

 

Dia 82: 22 Agosto de 2009 – Zhangmu, Tibete para Kathmandu, Nepal

«Acordamos em Zhangmu, no Tibete, a última cidade na China antes de passar para o Nepal.

Zhangmu é uma cidade de fronteira numa ravina que desce do planalto tibetano a 5000 m para o planalto do Nepal, a 2000 m. Uma descida de 3000 metros em menos de 50 km em que a paisagem muda de um deserto árido e rochoso com picos nevados para uma floresta tropical densa e húmida. A “friendship highway”, a estrada que liga Lhasa a Kathmandu, é um dos percursos terrestres mais fotogénicos que podem existir. Do céu azul turquesa do Tibete passamos para uma estrada que serpenteia desfiladeiros cobertos dum nevoeiro denso, que de quando em quando desvendam cascatas de centenas de metros de água gelada proveniente dos Himalaias.(…)»

 

Dia 100: 9 setembro de 2009 – Borisal para Kuakata, Bangladesh

«O capitão do “rocket boat” bate à porta da minha cabine às 5h40. Abro e ele diz-me “Good morning Sir! We arrived Borisal! We leave at six.” Arrumo as coisas rapidamente e desembarco no pequeno cais de Borisal, uma cidade portuária a sul de Dhaka. É noite cerrada, não há turistas claro... estou no Bangladesh.

Um rapaz a mascar tabaco com uma t-shirt esburacada e queimada do sol cumprimenta-me: “Good morning Sir! Want Rickshaw?” Estou demasiado sonolento para pensar, ler as páginas copiadas do Lonely Planet ou andar pelas ruas lamacentas de Borisal à procura do autocarro para Kuakata. Digo-lhe monossilábico “Kuakata! Bus!” e sigo extremamente desconfortável num riquexo para a estação de autocarros sul, um descampado lamacento e deserto onde dezenas de autocarros ferrugentos exibem os seus destinos em Bengali (…)»

 

Dia 108: 17 de setembro de 2009 – Tangalle, Sri Lanka

«8h00- Acordo com o som repetitivo e ao mesmo tempo explosivo das ondas que quebram a poucos metros da janela do meu quarto do hostel Ocean Wave. É engraçado como os nomes dos Hotéis, Resorts, Pousadas que estão perto do mar têm o mesmo nome em toda a parte do mundo, e como muito poucas vezes têm pouca ou nenhuma relação com a realidade: Sunset Beach hotel, Blue Ocean Hotel, Sandy Beach Hotel, Paradise Bay Hotel… Um hotel chamado Ocean Bay View pode, e muitas vezes é, um prédio em ruína com uma entrada lamacenta no meio de uma cidade portuária, em que, pela janela do quarto, isto se existir, vemos, não um coqueiro inclinado sobre areia branca, mas a roupa interior de alguém a secar num pátio interior húmido com musgo (…)»

 

Dia 122: 1 de outubro de 2009 – Agra, Índia

«5h00- Noite cerrada, acordo suado e impertinente com o despertador do telemóvel depois de uma noite desconfortável e mal dormida. Duche frio, ponho o pólo comprado há um mês atrás no Bangladesh, os calções falsos comprados no Sri Lanka há umas semanas atrás, as sandálias havainas compradas no Brasil há uns anos e os óculos Ray-Ban falsos comprados há 2 meses atrás na China. A indumentária completa não chega aos 10 euros. Em viagem é totalmente desaconselhado levar peças caras ou com valor sentimental. O melhor é levar o mínimo e ir comprando roupa quase descartável pelo caminho. Perdi, roubaram, esqueci-me no estendal ou na lavandaria… faz parte da viagem e mais vale não sofrer com isso (…)»                      

(Ricardo Cabeços)