Foto: Jorge Gonçalves
Entrevista Ricardo Neves-Neves – Encenador natural de Quarteira traz a Loulé a peça «Menos Emergências»

13:03 - 03/09/2015 LOULÉ
Ricardo Neves-Neves nasceu em Quarteira, onde viveu até aos 18 anos, idade em que partiu para Lisboa para estudar representação. No próximo dia 5 regressa à “sua terra” para mostrar ao público algarvio o seu trabalho com a peça “Menos Emergências”, num regresso desejado e com o qual se sente muito satisfeito.

A Voz do Algarve Loulé – Fale-nos um pouco de como iniciou o seu percurso profissional ainda quando se encontrava a viver no Algarve.

Ricardo Neves – Por volta dos 13 anos, quando ainda vivia em Quarteira, de onde sou natural, comecei a ter interesse pela área da representação, mas ainda sem qualquer experiência. Foi aí que comecei a procurar, por exemplo, outro tipo de cinema, mais alternativo. Contudo, o meu primeiro contacto com as artes foi através da música, quando comecei a aprender piano com o meu pai, em casa, e depois numa escola de música em Quarteira. Com 15 anos entrei no grupo de teatro amador de Quarteira e comecei a frequentar workshops que, por vezes, aconteciam em Quarteira, Loulé ou Faro. Foi neste último que fiz um workshop muito importante para o meu percurso profissional com a Rosa Estevão. E foi nessa altura, com o grupo de teatro amador de Quarteira, que me apercebi, junto dos meus colegas, que era isto que queria, pois participei em dois espetáculos como ator e encenei outros dois, quando tinha 19 e 20 anos. Nessa altura já estava no Conservatório, em Lisboa, mas consegui conciliar as duas coisas. Mesmo estando em Lisboa segui sempre ligado ao teatro amador, que um mais tarde, infelizmente, acabou por encerrar a sua atividade. Após de terminar a Licenciatura no Conservatório, fiz uma Pós-Graduação na Faculdade de Letras e desde aí tenho desenvolvido o meu trabalho no teatro nas diferentes vertentes de encenação, representação e escrita. Posso dizer que é uma surpresa que o trabalho que temos vindo a desenvolver esteja a retirar resultados tão positivos, especialmente porque estamos a falar de uma área que é cada vez mais precária.

 

V.A. – Primeiro começou por ser ator e só depois se virou para a encenação e para a escrita. Como se deu esse processo? Foi desde sempre um objetivo seu?

R.N. – Sim, eu comecei por ser ator, mas cedo comecei a querer encenar os textos que escrevia. Contudo, não posso dizer que tenha sido algo planeado, simplesmente comecei a ter vontade de escrever e encenar, como que por impulso. Lembro-me perfeitamente da primeira peça que encenei, com 19 anos, para o Teatro Amador de Quarteira. Tudo aconteceu de uma forma mais ou menos descomprometida. Hoje, claro, é algo que faço com mais responsabilidade, mas ainda hoje tenho um certo pudor em relação à escrita, embora a escrita seja a área onde tenho mais solicitações, a minha formação é somente de atore se me perguntarem qual é a minha profissão, digo sempre que sou ator.

 

V.A. – Entre representar, encenar e escrever, qual a área que lhe dá mais prazer enquanto profissional?

R.N. – Depende da situação. Eu gosto mais de representar quando não sou eu a encenar, ou seja, quando tenho um encenador e não estou preocupado com todo o espetáculo, mas acho que isso é transversal a qualquer ator. Quando temos muitas responsabilidades acumuladas, o prazer de representar pode desaparecer. Para além desse motivo, depende ainda do texto que estamos a trabalhar. Quanto à escrita, posso dizer que é algo contraditório, porque é a atividade que mais me é solicitada, mas que mais me custa fazer, é um sofrimento do primeiro ao último minuto, porque é aquela parte do trabalho em que não há nada, eu estou totalmente sozinho com uma folha em branco. Eu não posso dizer que tenha prazer na escrita, tenho sim quando trabalho o texto. Encenar sim, é um verdadeiro prazer e é onde me sinto mais empolgado na minha profissão. Há frequentemente várias complicações, a nível artístico, de produção e financiamento e são essas complicações que me levam, normalmente, a uma ou duas semanas da estreia, a dizer que é a última peça que vou encenar (risos). Mas apesar de tudo isso, há sempre um grande prazer. Contudo, continua a ser difícil dizer do que gosto mais, porque tudo depende da peça, dos colegas com quem contraceno, se há ou não uma relação pessoal, do encenador, do espaço físico onde atuamos…

 

V.A – Qual é a relação que tem nos dias de hoje com o Algarve, uma vez que vive em Lisboa há já alguns anos?

R.N. – Eu vou muito ao Algarve. Talvez passe ¼ do ano no Algarve, até porque quando tenho períodos de escrita vou para o sul do país, numa espécie de recolhimento para me concentrar. O Algarve dá-me o tempo que Lisboa não dá, nomeadamente ao nível de trânsito, que no Algarve não pode ser comparado com o que acontece em Lisboa. Para além disso, a minha família continua a viver nessa zona do país, por isso na altura do Natal e no verão vou com muita frequência. E a verdade é que cada vez mais sinto necessidade de voltar ao Algarve, apesar de me sentir muito bem em Lisboa. Eu vejo Lisboa como a minha casa e o Algarve como a minha terra.

 

V.A. – E a nível profissional, tem desenvolvido algum projeto no Algarve desde que se mudou para Lisboa?

R.N. – Artisticamente estive muito afastado do Algarve nos últimos anos, em particular porque não foi demonstrado interesse por parte das Câmaras Municipais em adquirir os espetáculos. Mas, curiosamente, a situação alterou-se nos últimos dois anos e tenho conseguido contruir uma relação forte com o Cine-Teatro Louletano e com a minha terra. Sinceramente gostava muito de realizar um trabalho mais continuado no Algarve, para além dos dois espetáculos que apresento por ano, não só para minha satisfação pessoal, mas também porque sinto que, apesar dos contínuos esforços de várias estruturas culturais e de algumas instituições públicas, continua a haver uma grande carência a nível cultural em todo o Algarve, mas em particular em Quarteira.

 

V.A. – Considera que ainda não há muita valorização da cultura e da arte no Algarve?

R.N. – Há, sem dúvida, um particular desinteresse pela Cultura, pelo menos comparada com outras regiões do país. Mas, no caso de Loulé, eu acho que o Presidente da Câmara Vítor Aleixo e a Drª. Dália Paulo estão a fazer um excelente trabalho. No caso de Quarteira, é mais complicado. Mas vou realizar uma campanha, que já foi realizada no ano passado, embora sem o sucesso pretendido, que está relacionada com a existência de um Centro Cultural em Quarteira. Eu não compreendo como é que pode ir a votos uma decisão desta natureza e não ser um dado adquirido que uma cidade como Quarteira, que tem muita gente e ainda abrange mais pessoas durante os meses do verão, tenha a possibilidade de ter um Centro Cultural. É uma pena que assim seja, porque parece-me que a cultura e a arte são uma necessidade clara. Claro que isso acontece porque nós só sentimos falta das coisas quando as conhecemos e a ligação direta à cultura não faz parte do quotidiano das pessoas que vivem em Quarteira, da mesma forma que não fazia parte do meu, daí que senti a necessidade de sair e ir para outros locais procurar workshops e depois sair do Distrito para ter a oportunidade de estudar. Para combater isso, Quarteira podia também procurar uma maior ligação com o Cine-Teatro Louletano.

 

V.A. - Como surgiu este espetáculo que traz agora a cena no Cine-Teatro Louletano – «Menos Emergências»?

R.N. – Tudo começou em 2012, quando fui convidado para participar no encontro de jovens dramaturgos em Barcelona, de onde saiu também uma outra peça minha “Mary Poppins, a mulher que salvou o mundo”. Quem estava a coordenar esse encontro era o dramaturgo britânico Simon Stephens e quando leu o conjunto de três peças curtas, que constituem este espetáculo, achou que eu me iria identificar com o texto, isto porque eu escrevo muito através da utilização musical da palavra e a verdade é que depois de o ler identifiquei-me totalmente. Em 2014 estreamos este espetáculo no Teatro Meridional, com uma ótima receção da parte do público, e fomos nomeados para “Espetáculo do Ano” desse ano, o que nos levou a querer continuar a apresentar o espetáculo. Por isso, este ano, estivemos no Teatro da Trindade, em Lisboa, e temos agora a oportunidade de levá-lo a Loulé. Prevê-se ainda que este ano e no próximo possamos continuar a apresentar o espetáculo pelo país fora.

 

V.A. – De que trata esta peça?

R.N. – É difícil falar sobre a temática desta peça porque ela fala do absurdo e é sempre difícil falar do absurdo. Não tem uma linha narrativa contínua, não tem princípio, meio e fim. Porém, no fundo, o que trata são temas muito densos e muito negros, mas que são abordados de uma forma luminosa, divertida, bem-disposta e leve. Pegar em assuntos sérios e pesados e trata-los com humor é um dos maiores desafios deste espetáculo, porque o humor não tem aqui o objetivo de ridicularizar, mas é a forma como os atores abordam esses assuntos ,com um certo divertimento.

 

V.A. – Este espetáculo é apresentado por si com 10 atores, 13 músicos e 20 cantores mas, em outras adaptações do texto, encontra-se um número inferior de pessoas no palco. Porquê esta escolha?

R. N. – A presença da música é já sugerida no texto de Martin Crimp. Nesta versão, para não apresentarmos o espetáculo com música gravada, decidimos levar a questão um pouco mais longe, tocando e cantando ao vivo. Daqui resultou a criação da orquestra Menos Emergências com 13 músicos e um coro que, na versão de digressão, tem 20 cantores, mas que em Lisboa chegou a ter 70. É um prazer poder trabalhar com artistas de áreas diferentes e com formações que vão desde o lírico ao jazz ou ao rock.

 

V.A. – É a primeira peça que traz ao Cine-Teatro Louletano?

R.N. – Não, apresentei no ano passado, no Dia Mundial do Teatro, a peça que escrevi “Mary Poppins, a mulher que salvou o mundo”. Este ano vamos apresentar o “Menos Emergências” e está previsto que, no próximo ano, hajam mais parcerias com o Cine-Teatro Louletano.

 

V.A. – Como se sente ao trazer à sua terra o seu trabalho e vê-lo a ser recebido pelos seus conterrâneos?

R.N. – É muitíssimo bom! Há muitas pessoas que fazem espetáculos e dizem que o público não é importante, mas a mim o público interessa-me bastante. E apresentar o espetáculo a pessoas que me acompanham desde criança, tanto família como amigos, é muito importante. Às vezes a conversa não chega para explicar o que ando a fazer e já que tenho uma atividade que é pública é sempre bom apresentar os meus projetos a essas pessoas sem que tenham que se deslocar 300 quilómetros para assistirem às minhas peças. Para além disso, é também muito bom saber que estou a contribuir para o enriquecimento cultural do nosso Concelho.

 

Por VA / Sofia Coelho