Hélder Cavaco, natural de Salir, concelho de Loulé, foi diagnosticado com um problema na córnea esquerda e soube depois que a sua operação iria ser cancelada devido à covid-19.

O tempo escasseia e a cada dia, a escuridão apodera-se mais do homem de 58 anos. A sua esperança está do outro lado do telefone, com uma ligação do hospital, mas o algarvio já admitiu que tem vontade de desistir.

VA- Explique-nos um pouco do seu problema. Quando surgiu e como se foi agravando?

HC- Eu já nasci com miopia. Comecei a usar óculos aos 3 anos e aos 15 coloquei lentes de contacto. Em 2005, fiz a minha operação intra-ocular [cirurgia refrativa] em Inglaterra. Neste meio tempo, tive vários problemas [a nível de infeções] e a miopia foi sempre aumentando. Quando fui operado, os meus olhos estavam com -19,00 e -21,00 dioptrias e os meus óculos eram, aproximadamente, semelhantes ao fundo de uma garrafa de vidro de Coca-Cola, se não mais. Aquilo que os oftalmologistas sempre me disseram, é que o meu caso era único em Portugal na altura e talvez até hoje.

As lentes de contacto que adquiri em Inglaterra seriam para a vida toda, mas em Portugal soube que a sua duração era entre 2 e 5 anos. Depois, teria de as trocar. Deixei de usar óculos e em 2008 apareceu-me um glaucoma, que nunca me disseram em Inglaterra que era devido às lentes de contacto. Soube em Portugal e, depois disso, comecei a usar óculos para ver ao perto e para me ajudar a clarear a visão.

VA- Em termos de acompanhamento médico, que hospitais frequentou ao longo destes anos?

HC- Tenho andado sempre no privado. Não tenho médico de família e como estava “aconchegado” financeiramente, conseguia usufruir desse serviço. Tratei-me no Hospital de Loulé muitas vezes, depois mudei-me para o de Portimão, porque gostava do médico. Foi nessa altura que me foi diagnosticado que eu precisava de uma córnea no olho esquerdo com uma certa urgência. Como no Algarve não há banco de córnea, teria de me dirigir ao Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, ao Hospital de São João (Porto) ou ao Hospital de Santa Maria (Lisboa). Cheguei a ir à CUF em Lisboa e depois de pagar quase 400 euros em consultas e exames, fizeram-me um orçamento de operação: seriam cerca de 12 mil euros ao olho esquerdo e 8 mil euros ao olho direito.

VA- Depois desse diagnóstico, o Hospital de Santa Maria acabou por lhe cancelar algumas consultas. Como se desenrolou esse processo e que justificações lhe foram dadas?

HC- Tudo correu bem cerca de 3 ou 4 meses e iria ter a primeira consulta a 1 de abril de 2020. Muito próximo dessa consulta, recebi um telefonema a avisar que esta foi cancelada devido à pandemia [que tinha surgido no início de março]. Já em junho, tive uma consulta e só voltei ao hospital a 13 de janeiro deste ano e os médicos disseram que existiu uma grande alteração na minha situação e a minha visão começou a baixar.  

VA- Depois destas más notícias, vieram as boas… Mas a situação voltou a complicar-se?

HC- Sim, recebi, já no dia 15 de janeiro, uma boa notícia. O médico ligou-me a informar que tinham conseguido uma córnea para o meu olho esquerdo e que iria ser operado em breve.  Na semana seguinte, foi decretado que as consultas e operações não essenciais iriam ser canceladas [Governo decreta estado máximo de contingência em hospitais] e a minha operação ficou sem efeito, segundo me disse o hospital.

VA- A sua operação não foi considerada prioritária porquê? O que fez para tentar solucionar o problema?

HC- O que eu penso hoje é que o hospital poderá não ter lido bem os decretos e adiantou-se quanto ao cancelamento. Disseram-me que tudo dependeria da duração da pandemia de covid-19. Dirigi-me ao Hospital de Santa Maria e disseram-me que estavam fechados e só quem estava a operar era o Hospital de S. José. Cheguei a ir lá, mas não poderiam solucionar o meu caso porque eu estava a ser acompanhado no Santa Maria. Após avaliação, o doutor disse-me que o ideal seria que eu fosse operado dentro de três semanas, porque daqui a sete, poderá ser tarde demais. No entanto, foi-me adiantado que mesmo que eu fique cego, poderei sempre ser operado, mas que isso poderá trazer mazelas.

Eu pouco posso fazer para mudar este cenário. Não me consigo movimentar, nem ver quase o telemóvel. Sei fazer uma pesquisa, mas não consigo e estou limitado. Onde eu tento chegar a algum lado, é através de amigos e familiares que estão preocupados.

VA- Como está a gerir a situação a nível emocional, sabendo que poderá perder a visão? O tempo é o seu pior inimigo neste momento?

HC- O tempo…. O tempo de espera é inimigo para mim. Como se deve imaginar, há aqueles momentos em que temos fé e esperança, mas há outros em que parece que isto nunca mais acaba. Depois é aquela frustração de querermos fazer alguma coisa e não conseguirmos. Eu antes era uma pessoa ativa e não pedia ajuda a ninguém para nada. Eu gosto de ajudar, mas não gosto de pedir ajuda e hoje é o contrário. Eu sou dependente e sou um inútil. Um doente covid-19 (na sua maioria) consegue curar-se ao fim de 15 dias e está de regresso à sua vida normal e se eu ficar cego é para toda a vida. Estão a dar toda a atenção aos doentes covid, mas todos nós precisamos de ajuda. Essa atenção deveria ser repartida.

VA- Neste momento, não está a trabalhar. O que fazia anteriormente e como está agora a sua situação financeira?

HC- Devido à covid-19, estou sem trabalho desde 2019. Eu era motorista de transfers e trabalhava com o cliente inglês, escocês e irlandês. Eu e a minha parceira temos esta pequena empresa há quatro anos. A pandemia ‘bloqueou’ aeroportos e impediu clientes de virem para Portugal e nós no Algarve sem o turismo não sobrevivemos.

Neste momento, a minha fonte de rendimento é zero, desde 2020. Eu e a minha parceira tínhamos algum dinheiro de lado, que se esgotou. Desde setembro para cá, estou a viver às custas de familiares. Tenho um filho de 21 anos que está a viver em Inglaterra para estudar e também não trabalha. Ele fez anos há pouco tempo e eu nem um euro lhe consegui enviar, como eu fazia antes. Eu preferia ‘ter olhos’ [ver bem] do que ter dinheiro e, neste momento, nem uma coisa, nem outra.

VA- Quando se movimenta pede ajuda? Fora de sua casa, como estão os acessos a cidadãos com dificuldades de visão em Salir?

HC- Estou a adaptar-me à minha realidade. Como conheço os cantos à casa, sei onde coloco os pés, mas mesmo assim, tenho cuidado para não escorregar e bater. Fora de casa, sai na semana passada sozinho e caminhei na estrada de Salir – que é muito boa – e tem o traço continuo e eu fui sempre em frente. Não vou no passeio porque sei que vou cair.

Quanto aos acessos, não tanto em Salir, mas o que todos vemos por aí, não há parte nenhuma do mundo preparada para a diferença. Por exemplo, em Armação de Pêra, não posso sair à rua porque as pessoas passeiam os animais e esquecem-se de apanhar os dejetos. Em Salir estou mais seguro nesse aspeto e também no aspeto da pandemia.

VA- A covid-19 trouxe o receio do toque e fez imperar o distanciamento social. As pessoas aproximam-se menos para falar e ajudar nos dias que correm?

HC- Sim, acredito que sim. Apesar de não sair muito do meu quarto, vejo que param aqui padeiros e peixeiros à minha porta e antes todos ficavam a conversar e a rir, hoje, as pessoas compram e ‘fogem’ para casa. Não há o ‘calor’ de antigamente.