Por Luís Pina | Licenciado em Acessoria de Administração | aragaopina59@gmail.com

A pandemia veio alterar as nossas vidas de uma forma mais profunda do que se poderia imaginar. Longe de se confinar à condição de mais uma mera gripe como alguns poderiam supor, tudo indica que ela veio mesmo para ficar, agravando de forma substancial e preocupante problemas económicos, sociais e da própria saúde mental, não apenas da população directamente infetada como de todos em geral. Como era também de esperar esta difícil crise de saúde pública veio afetar particularmente os que sofrem de algum grau de dependência, adição ou vício. Ocasião oportuna, pois, para uma abordagem a esta problemática com quem a sentiu na pele e a tem vivenciado de perto, fazendo da ajuda aos demais o seu principal móbil de vida.

Joaquim Carlos Rodrigues Borges nasceu a 5 de outubro de 1967 em Lisboa, sendo o 5º de 8 irmãos. Criado em Agualva-Cacém, no lugar das Lopas, a família vivia da venda ambulante de pescado, e mais tarde no mercado de Agualva, onde residiu até aos 36 anos de idade. Concluída a escolaridade obrigatória para a época, iniciou a vida profissional aos 14 anos em Lisboa numa fundição de metais, onde começou os consumos ainda na escola secundária. A partir dos anos 80 faria um pouco de tudo em termos profissionais, desde oficinas ao comércio e construção civil. Em consequências dos consumos, com apenas 22 ou 23 anos acabaria a viver nas ruas de Lisboa e pela Linha de Sintra, sendo que apenas aos 29 anos conseguiria finalmente parar graças à ajuda do então SPTT (CAT das Taipas).

 

V.A. - Que experiências da sua vida pessoal o levaram a dedicar-se a esta área tão sensível da vida das pessoas?

J.B. - Em primeiro lugar a minha própria experiência de vida a dificuldade de anos e anos de consumos sem conseguir uma solução para o meu problema com as substâncias.

Quando finalmente entendi que ia morrer a consumir, acabei por pedir ajuda e parar, mas parar eu sempre fui conseguindo, agora parar e manter-me abstinente e que era complicado para mim. Apareceu um amigo de infância que eu sabia também ter consumido e que estava sóbrio e abstinente há já alguns anos. Ao partilhar comigo a sua experiência em recuperação acabou por me ajudar a manter-me também limpo e sóbrio.

Tudo o que esperava de mim era que eu também retribuísse essa ajuda um dia a alguém e foi assim que me fui dedicando a ajudar outras pessoas cujo processo de vida também passou pela adição ativa.

 

V.A. - Uma das tónicas, senão a tónica principal da sua actividade está ligada aos grupos de auto-ajuda para pessoas que têm ou tiveram problemas com álcool e drogas. De que modo os conheceu e como surgiu a oportunidade?

J.B. - A minha chegada aos grupos de auto-ajuda foi através desse amigo, assistindo regularmente a reuniões onde se encontravam pessoas com os mesmos problemas e dificuldades que eu tinha.

A forma como iam falando dos seus dias e como ultrapassavam os problemas foi um tónico e uma inspiração para mim, na altura na Linha de Sintra existiam duas reuniões diárias pelo que se eu estivesse disposto a fazer esse esforço diariamente, como fazia para consumir, certamente eu também iria conseguir sobreviver um dia de cada vez como eles conseguiam.

 

V.A. - Que balanço faz da experiência pessoal e da ajuda a que se tem prestado a vítimas desta problemática?

J.B. - É sempre um balanço positivo, de recomeço diário. Isto funciona 24 horas de cada vez, não existem compromissos nem obrigações, faço o melhor que posso e sei todos os dias, o que é suficiente para mim. A nível da ajuda às pessoas com este problema, o nosso país está preparado com serviços que funcionam e que estão ao dispor dos doentes e das famílias. Nesta situação pandémica, claro que as dificuldades aumentaram até porque as limitações das liberdades fizeram mossa nos consumos, no tráfico, nos preços, e o facto de se fazer quarentena para ingresso em comunidade terapêuticas, por exemplo, veio dificultar e muito a entrada em tratamento. De qualquer modo o nosso país tem sido pioneiro em muitas políticas e soluções nesta temática: existem respostas, programas e apoios, mas o que ainda existe muito é a vergonha e o preconceito em aceitar esta dependência como uma doença! As famílias ainda têm alguma relutância em aceitar, em assumir o problema e pedir ajuda.

 

V.A. - No âmbito das ajudas que têm sido anunciadas pelo Estado e demais instituições aos “sem-abrigo”, que medidas adicionais considera que seriam úteis para as melhorar?

J.B. - Em relação às pessoas que vivem em situação de sem-abrigo tem sido feito a nível nacional um esforço extra de acelerar uma série de programas que já existiam, e esta pandemia veio trazer à luz coisas que não queríamos ver enquanro colectivo. É uma questão moral e de ética social e não só uma questão da miséria de cada um. O confinamento, a proibição de circulação e outras medidas deixaram estes que já eram os mais frágeis numa situação de risco de sobrevivência.

Abriram-se valências de emergência e estão em andamento rápido albergues, apartamentos partilhados, casas de abrigo imediato “housing first”, tudo o que os recursos disponíveis vão permitindo. A sociedade tem obrigatoriamente de olhar para estas pessoas, que já de si vivem enormes dificuldades e não lhes dificultar ainda mais a vida com burocracias e papeladas. Hoje em dia a população nesta situação é muito diversa e as suas dificuldades também, como problemas mentais, dependências, desemprego, divórcios. Afinal, estes podem ser também os nossos pais, irmãos, filhos, familiares e amigos! Todas estas pessoas, são cidadãos de pleno direito.

Aquilo que entendo que pode e deve ser feito com estas pessoas é acompanhá-las mais. Sabemos que o risco de contágio é grande, mas não podemos virar costas e estes não podem ficar para trás mais uma vez.

 

IMPACTOS DA PANDEMIA

V.A. - Neste contexto difícil e complexo da pandemia poderá aumentar o número de recaídas? Que poderias ou deveria implementar-se para precaver este perigo?

J.B. - Como é óbvio a dificuldade que todos estamos a viver acaba por ser mais intensa em quem tem estas dificuldades e mesmo em recuperação por longos períodos as pessoas não estão propriamente curadas. Mais uma vez a capacidade de pedir e aceitar ajuda é fundamental. Não estou mandatado nem autorizado a falar em nome dessas irmandades anónimos, dos alcoólicos e narcóticos. Falo em nome pessoal, mas sei que essas associações passaram os grupos de autoajuda para serviço online quase imediatamente, pois souberam adaptar-se á situação para não deixar ninguém sozinho que queira recuperar. É enorme o número de pessoas que estão a ganhar consciência do seu problema através das plataformas digitais e a receber a ajuda dos seus pares. A prevenção nestas coisas é não deixar os problemas ganharem uma dimensão que muitas vezes não têm: É voltar á base, pegar no telefone e ligar a alguém. As tele-consultas dos Cats e outras instituições estão ativas e existem muitas linhas de apoio telefónico. Pedir ajuda é primordial, e vamos certamente ultrapassar esta doença como ultrapassámos outras, principalmente estas populações. O HIV, as Hepatites, as Cirroses, as overdoses etc, foram e são crises que estas populações viveram e ultrapassaram. Acredito sinceramente na resiliência e resistência destes guerreiros.

 

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