Por Luís Pina | aragaopina59@gmail.com

A cidade vivia em transe, naqueles dias agitados e confusos de 74. Entre manifestações de regozijo quase histérico de uns, de forte e legítima apreensão de outros tantos, os ouvidos colavam-se à rádio na ânsia exasperante das notícias e comunicados que se sucediam da (então) metrópole, das forças armadas e outras instâncias locais que, frequentemente contraditórias, acentuavam um clima crescente de insegurança e incerteza. Eram os ventos de Abril, ou vendaval de mudança que iriam transformar profundamente as nossas vidas e escrever novos capítulos da história do País. Da varanda do nosso apartamento, confinante com a Avenida 5 de Outubro em Luanda, uma súbita manifestação de negros, até então impensável, faz soltar um grito de susto à minha mãe, que de imediato me manda trancar todas as portas. Igualmente impensáveis eram nesses tempos os telemóveis, sendo que até os fixos eram um privilégio de alguns, pelo que teríamos de aguardar ansiosamente pelo regresso de meu pai de seu emprego. Passado o susto, que felizmente não passou disso, minha mãe acalma-se e retorna ao quarto, à sua leitura e ao transístor de cabeceira. Alguém, na emissão da tarde de uma estação local e na senda dos acontecimentos em curso, vociferava contra “os ladrões, os que querem roubar a nossa história mas não podem roubar a alma do povo”… e se a proclamação se enquadrava no espírito revolucionário e no complexo processo de descolonização que se seguiria, mais a propósito veio quando minha mãe, debruçada sobre um jornal local da época enviado do Algarve, me chamou a atenção para “um certo e talentoso poeta popular de sua Loulé natal”: seu nome, António Aleixo! Nele se destacava: “Eu sei que pareço um ladrão… mas há muitos que eu conheço, que não parecendo o que são… são aquilo que eu pareço”. Simples, mas sábia e emblemática quadra, entre outras desse poeta cuja obra teria o privilégio de conhecer mais tarde, já em Loulé. Eis pois como, por iniciativa de minha mãe, sempre tão curiosa sobre os valores culturais de sua terra fiquei, à época adolescente, a conhecer António Aleixo ainda em Luanda. Tempos conturbados mas curiosos, nesta evocação que agora vos deixo.