Francisco Louçã esteve em Loulé no dia 20 de setembro, a convite da Câmara Municipal de Loulé, para participar no ciclo de Conferências Horizontes de Futuro, numa sessão participada tendo como tema «Portugal em risco: Dos incêndios à pirataria financeira».

Nesta entrevista que concedeu à Voz de Loulé, partilha saberes e inquietações, com o seu modo particular de olhar o País, a Europa e o Mundo, desafiando o leitor para uma reflexão crítica sobre a sociedade onde vivemos.

Francisco Louçã é conhecido pela generalidade dos leitores mas, em jeito de apresentação, deixamos um breve apontamento sobre o seu percurso pessoal e profissional: Nasceu em Lisboa em 1956, foi reconhecido como o melhor aluno do Liceu e do curso de Economia, fez mestrado no ISEG, doutorou-se em 1996, é professor catedrático no ISEG e tem uma intensa atividade editorial em livros e revistas publicadas em Portugal e no estrangeiro. Foi fundador do Bloco de Esquerda e deputado na AR (1999-2012). Atualmente é membro do Conselho de Estado e do Conselho Consultivo do Banco de Portugal.

Na sessão Horizontes de Futuro identificou os incêndios e a pirataria financeira como os principais riscos atuais.

 

VA- Os incêndios são uma realidade que nos confronta sobretudo no período estival. O que podemos fazer para diminuir as tragédias humanas e a devastação do nosso património natural?

FL - O incêndio de Monchique, uma serra que tinha sido pelo menos parcialmente limpa, veio demonstrar o perigo da eucaliptização, que representa um terço daquela área. Desta vez, ao contrário de outras ocasiões, também as superfícies trabalhadas pelas empresas eucalipteiras ardeu, o que demonstra que, mesmo que essas empresas tenham os recursos para os cuidados de limpeza e ordenamento que faltam aos pequenos agricultores, também são atingidas quando o fogo ganha uma temperatura tão elevada e é impulsionado pelo vento, de modo que não há forma de o conter.

Ainda bem que este ano houve uma preocupação permanente e sem precedentes pela limpeza da floresta, que nenhum outro governo tinha tido, mas bem se viu que isto não basta. No anterior governo, Assunção Cristas promoveu o eucalipto, com enorme sucesso: só três países no mundo têm em valor absoluto uma maior área plantada de eucalipto do que Portugal e é por isso que vamos ter sempre incêndios. A nossa floresta é uma pilha incendiária que só está à espera do fósforo.

Falta-nos ainda uma reorganização da floresta, de modo que o Estado nos defenda dos proprietários ausentes ou incapazes de limpar a sua terra. O bom aproveitamento económico implica que não haja este perigo incendiário, para tranquilidade das populações. É um bom passo em frente que, finalmente, e há tantos anos que insisto nisso, o Estado passe a mobilizar as terras sem dono para que alguém se responsabilize pela sua limpeza. Por mim, não quero que alguém volte a passar pelo susto por que passaram as gentes de Monchique.

 

VA- Porque identificas a pirataria financeira como uma grave ameaça para Portugal e a Europa?

FL - A renda financeira é a maior fonte de poder que se opõe à democracia. Portugal teve essa experiência com a troika, mas estamos sempre ameaçados por esse poder. Foi o que destruiu a economia grega e é o que está a dar origem ao desespero das pessoas, em que se alimentam tantos discursos de ódio.

A Itália é o principal alvo potencial dessas ameaças financeiras, dada a dimensão da sua dívida, mas também Portugal e Espanha, que têm dívidas de mais de 120 e de 100% dos seus PIBs, podem sofrer uma pressão dos mercados especulativos se os juros continuarem a aumentar. Uma nova recessão está no horizonte e pode não ser dentro de muito tempo. Por isso, a revista The Economist, que é uma voz autorizada da economia neoliberal e muito próxima da City de Londres, um dos maiores centros financeiros do mundo, tinha recentemente uma capa que anunciava “a próxima recessão”, mas que, pior, concluía que as economias desenvolvidas estão agora mais mal defendidas do que em 2007, no tempo da crise do subprime: a especulação aumentou, a finança sombra voltou a crescer, os bancos voltaram ao velho negócio de jogos de casino, o desemprego é ainda elevado, sobretudo entre os jovens, os salários são muito baixos, e os juros de referência, como ainda não são elevados, não podem ser muito ajustados no caso de uma recessão. Tudo riscos e, por isso, o pânico pode surgir a qualquer momento.

 

VA- O que podem fazer os cidadãos e o Estado Português para prevenir e controlar os impactos negativos destas ameaças à economia e à vida das pessoas?

FL - A economia é parte da nossa vida e, por isso, a resposta é a mesma que para qualquer problema social, é a democracia que é a resposta. O Estado deve proteger os cidadãos e a nossa forma de vida, assegurando segurança para as pessoas, por via do serviço de saúde, da educação de qualidade, da segurança social que protege idosos e desempregados, da proteção à tranquilidade das pessoas. Para isso, precisa de força, que é dada pela confiança da população, e de instrumentos. O mais importante é o controlo do sistema financeiro, para evitar que as poupanças e depósitos sejam postos em causa por aventureiros, para combater a corrupção e para conseguir usar o que temos para as prioridades nacionais.

Com o acordo entre os parceiros de esquerda e o governo, o salário mínimo aumenta até 1 de janeiro de 2019 de 505 para 600 euros pelo menos. Isto nunca tinha acontecido. É uma mudança importante para 700 mil pessoas, mas lembro-me bem de como a Comissão Europeia quis evitar este aumento e garantiu sempre que criaria desemprego. Falso, criou emprego e reduziu a pobreza. É com medidas deste tipo que a esquerda pode provar que sabe governar e que não se deixa intimidar por Juncker ou por outros.

É deste tipo de respostas que precisamos. Coerentes, assentes num princípio social bem claro, a criação de emprego e a redução da precariedade, que é destrutiva da nossa vida social.

 

VA- Assistimos com alguma preocupação a sucessivos casos de corrupção. Como explicas esta vulnerabilidade e o que se pode fazer para combater a corrupção?

FL - A corrupção é endémica no sistema capitalista ou em qualquer sistema que promova o enriquecimento e que crie oportunidades de poder para quem tem o capital ou a decisão na mão. Para mais, o silêncio quanto a casos tão gritantes de corrupção acaba por estimular outros a fazerem o mesmo: veja-se o caso do submarinos, em que os administradores da empresa que os fabrica foram condenados na Alemanha por terem corrompido responsáveis do governo português, mas em Portugal o caso foi arquivado.

Mais recentemente, tem havido alguma investigação sobre os casos de corrupção. Mas não há nenhuma surpresa, pois não? Criam-se “vistos gold” que permitem ganhar vistos para a União Europeia com qualquer investimento imobiliário ou outro, e os governos anunciam um grande aumento de investimento (e a criação de sete postos de trabalho, se me lembro das últimas estatísticas. Alguém se surpreende se aparecem funcionários a quem foi oferecido dinheiro para facilitarem os processos, ou que apareçam criminosos no meio das listas dos “investidores”?

O combate a estas e outras formas de corrupção exige polícias e ministério público muito bem equipados, o que não acontece agora, e leis claras que permitam descobrir o dinheiro onde ele está, nas contas no país e nas offshore. Sem essa transparência financeira o crime e, em particular, a corrupção, estarão sempre protegidos.

 

VA - Os portugueses têm sido confrontados e obrigados a suportar financeiramente a falência do sistema financeiro. Seria possível outra alternativa?

FL - A irresponsabilidade do setor financeiro mobilizou mais de 40 mil milhões de euros em custos e em garantias públicas desde a crise de 2007-9, que em Portugal se transformou numa longa recessão e que foi agravada pela austeridade. Só no ano corrente, o Novo Banco, que foi privatizado a 75% para um fundo norte-americano, consumiu cerca de 700 milhões de euros de financiamento do Fundo de Resolução, ou seja, custou aos outros bancos e, no fundo, ao Estado, dado que o contrato permite que os proprietários não sejam obrigados a refinanciar o banco quando a coisa corre mal, e o Estado tenha ficado com essa estranha obrigação. Para o ano de 2019, o Orçamento já reserva mais 400 milhões de euros, mas o banco anuncia que quer outros 700. De assinalar que este buraco financeiro já consumiu mais de 7 mil milhões de euros e foi só neste banco. Se lhe somarmos o Banif, três mil milhões, e os outros bancos, ficamos com uma dimensão desta mistura de casos de criminalidade e de complexa finança predatória.

Recentemente a SIC lembrou, numa notável reportagem, o caso das pessoas, e foram milhares, que foram levadas pelo BCP a endividar-se para comprarem ações desse banco, a cerca de 6 euros, que depois desvalorizaram em 95%. As pessoas perderam tudo e ficaram com a mesma dívida ao banco que as tinha enganado, que depois despejou algumas das suas casas. Isso é pirataria financeira, aqui está a resposta.

Mas há outras formas de pirataria, e uma dessas formas são os juros cobrados sobre a nossa dívida pública, ou seja, os impostos que temos que pagar para garantir rendas financeiras.

 

VA- Tens defendido a necessidade da renegociação da Dívida Pública Portuguesa. Como se poderia operacionalizar e que reflexos e consequências teria na nossa economia?

FL - No estudo em que participei, de equipas do Bloco de Esquerda e do governo, e ainda com alguns economistas independentes, demonstramos que a redução do perfil do stock da dívida pública para um juro de 2%, que é o que já está agora a ser consagrado nos mercados financeiros para as emissões recentes de dívida de médio prazo, reduziria em mais de 52 mil milhões de euros o valor atualizado da nossa dívida soberana e teria efeitos importantes na balança de rendimentos, diminuindo a extração que é feita à nossa economia. Ainda não seria suficiente para permitir relançar o investimento em grande escala, mas só com isto já significaria que chegavamos a défice zero, ou seja, seria desnecessário emitir por ora mais dívida e portanto a nossa dependência dos mercados financeiros diminuiria.

A reestruturação da dívida soberana é, além disso, a única forma de nos protegermos de uma nova recessão, que a imprensa internacional vai dando como certa num futuro próximo. Logo veremos, há sempre grandes incertezas e uma recessão até pode ser provocada pelas guerras comerciais de Trump ou pela crise italiana dentro do euro. Mas virá e subirá os juros. Por isso, devíamos ter arrumado a questão quando temos força para a negociar, de modo a ficarmos independentes de empréstimos futuros e dispormos de capacidade nacional de tomar decisões económicas, deixando de pagar as rendas financeiras que têm estrangulado o nosso país.

Macron prometeu que, na sua ideia de reformas europeias, incluiria um mecanismo de mutualização moderada de pequena parte das dívidas, mas nunca mais se lembrou disso e a grande “reforma do euro”, prometida por Centeno e outros, ficou no tinteiro. Era pura demagogia. Os poderes que cobram a renda financeira são mais poderosos do que os maiores governos europeus.

 

VA - O Brasil, país irmão, surpreendeu-nos com a emergência de um candidato populista de extrema-direita. Como conheces bem a realidade brasileira podes partilhar a tua análise sobre este fenómeno e quais as perspetivas e desafios que se colocam aos brasileiros?

FL - A vitória de Bolsonaro é um choque e só pode ser explicada por um sentimento popular de insegurança social, económica e policial, mas também por uma crise de regime que foi agravada pelo golpe palaciano que demitiu, sem qualquer razão legal, a presidente eleita do Brasil. Temer, que se aliou às bancadas do boi, da bala e da Bíblia, como se diz no Brasil, ou seja, aos latifundiários, aos promotores da violência e aos tele-evangélicos, e ainda a alguns importantes donos de empresas e jornais, abriu assim a porta para uma radicalização que desfez a direita e deu o poder a um homem impreparado, um rufia demagogo e um fascista em construção.

A complacência da direita e das instituições brasileiras agravou este curso, em particular a intervenção partidarizada do judiciário: o juiz que investigou e condenou Lula, e que ilegalmente o impede mesmo de votar, fez-se representar pela família no apoio a Bolsonaro e é anunciado como um dos seus ministros futuros.

O pano de fundo deste processo é o ascenso de populismos, em alguns casos, como de Bolsonaro, com os tiques fascistas: ameaça contra os adversários, imposição da religião como norma definidora da lei, desprezo pelos pobres, discurso de ódio, mobilização social para destroçar o movimento operário e popular.

Com Freitas do Amaral e Pilar del Rio lancei um apelo contra Bolsonaro, que foi seguido por muitas figuras de referência da cultura e da vida pública portuguesa, embora se registe que, no PSD e no CDS, a maior parte dos políticos decidiu fingir que não lhe interessava o resultado brasileiro e que por isso ficaram indiferentes à eleição, o que é somente uma forma de apoiar ou de tolerar Bolsonaro. O problema é que, na defesa da liberdade, não é tudo igual, e um “canalha”, como lhe chamou Francisco Assis, não é igual a um democrata.

 

VA- O populismo quer de extrema-direita quer de extrema-esquerda, cresce na Europa e noutros continentes. Como explicas este fenómeno e como cidadãos o que podemos fazer para contrariar esta tendência?

FL - O populismo é uma política de direita, não é de esquerda. A esquerda quer o povo na luta, o populismo quer o povo a aceitar a voz de comando do chefe. É por isso que os populismos realizados foram fascistas, na primeira metade do século passado, e são agressivos, xenófobos e baseados em discursos de ódio nos dias de hoje. O exemplo da questão anterior, o de Bolsonaro, é talvez uma caricatura, mas nem por isso menos perigoso.

Agora, o sucesso de partidos e de governos populistas reacionários tem uma raiz nos descontentamentos populares, nos medos, na insegurança, até na imagem de decadência dos sistemas políticos. A mentira como instrumento político faz o seu caminho, mas é preciso que haja alguém disponível para acreditar nela. No Brasil isso é muito evidente, mas também na dita “internacional populista” de Le Pen e Salvini, que se pode estender a figuras tradicionais da direita europeia, como Orban, da Hungria, e outros, da Finlândia, Alemanha, República Checa, Polónia, Áustria ou mesmo Suécia. Em Portugal há algumas tentativas, até agora sem grande sucesso.

A única resposta a estes perigos, que defenda a democracia, assenta na resposta à vida das pessoas, assegurando-lhes segurança na sua vida, na casa, na saúde, no emprego, na pensão de velhice, na proteção dos filhos.

 

VA - Como cidadão crítico e atento que mensagem gostarias de deixar aos leitores da Voz de Loulé?

FL - Deixo um agradecimento pelo acolhimento na Câmara Municipal e um incentivo à vida democrática.

 

 

Entrevista realizada por Joaquim Guerreiro

outubro 2018