por Diogo Duarte | Jurista, Licenciado em Direito e Mestrando em Direito Internacional | diogoduarte@campus.ul.pt

Atualmente, o acesso à Internet rege-se pelo princípio da neutralidade, significando isto que, ao contratualizar um serviço de acesso à Internet, com uma qualquer empresa, o utilizador pode, por princípio, aceder livremente aos conteúdos online, sem que haja diferenciação quanto ao tipo, qualidade, e conteúdo da informação a que acede para efeitos do serviço que lhe é prestado.  

Todavia, imagine-se que os provedores de serviços de Internet – Internet Service Providers ou ISPs – poderiam fazer depender o acesso à Internet dos seus os conteúdos disponibilizados online, contratualizando com o utilizador o valor do serviço em função dos websites visitados ou das aplicações utilizadas. Imagine-se ainda, a título meramente exemplificativo, que a fatura da Internet, ao invés de prever um valor global pelo serviço de acesso à Internet, passaria a prever um valor variável em função dos conteúdos online, de acordo com a seguinte listagem: 5 euros pelo acesso ao Google; 8 euros pelo acesso às redes sociais (facebook, Instagram, WhatsApp, etc.); 4 euros pelo acesso às redes profissionais; 2 euros pelo acesso ao correio eletrónico; etc.

Ora é precisamente este o ponto sobre o qual incide o debate em torno do tema “Internet Neutrality” ou neutralidade da Internet, que primeiramente despontou no espaço de debate público norte-americano, mas que rapidamente se alargou à Europa.

De grosso modo, a neutralidade da Internet, importa que os provedores de serviços de Internet atuem por forma a garantir o livre acesso à informação, abstendo-se de praticar qualquer ato de ingerência quer no que respeita aos conteúdos online, quer no que respeita à velocidade de tráfego, não lhes sendo permitido diferenciar o serviço em função de outros factores que não o acesso à Internet.  

Não obstante da União Europeia adotar uma forte postura política naquilo que respeita ao acesso à Internet, o status quo poder-se-á modificar, relembrando, sob este aspeto, que se encontra agendada, para o próximo dia 14 de dezembro, uma votação na qual se prevê que a Comissão Federal de Comunicações norte-americana, órgão regulador da área de telecomunicações e radiodifusão dos Estados Unidos, venha a repelir uma série de diplomas que tutelam positivamente o princípio da neutralidade da Internet.

Antecipando os ecos desta votação e da discussão pública, stricto sensu, é fazendo mote próprio à opinião que se ora se pretende expor, que se apresentam de seguida, três dos principais argumentos que abonam a favor da neutralidade da Internet, rejeitando-se, assim, os motivos que presidem à defesa da mitigação dessa neutralidade.

Em primeiro lugar, apresentam-se os motivos atinentes aos aspetos económicos permitidos pela neutralidade da Internet. Permitir que o serviço prestado pelos provedores de serviços de Internet se diferencie em função do tipo dos conteúdos online e da finalidade do utilizador, equivaleria, na prática, a que se aceitasse o desvirtuamento do mercado concorrencial gerado por esses mesmos conteúdos, considerando, que o efeito gerador da supressão da neutralidade da Internet, permitira àqueles agentes obter uma espécie de monopólio no acesso aos diversos conteúdos da Internet. Para que se perceba de forma intuitiva, o que aqui está em causa, imagine-se que a entidade reguladora do mercado energético vinha agora a permitir que as empresas de distribuição de eletricidade, pudessem discriminar os seus preços em função dos aparelhos domésticos, aplicando diferentes preços pela utilização dos mesmos. Não será de surpreender, que tal permissão leve a uma efetiva desregulação da atividade dos provedores de serviços de Internet. A este propósito, tenha-se presente que este tipo de práticas foi já observado no passado, tendo, inclusive, levado a Comissão Europeia a aplicar uma coima à Google, no valor de 2.420 milhões, fundamentada no abuso de posição dominante, considerando que foi dado como provado que a empresa norte-americana dava primazia à sua ferramenta de comparação de preços na lista dos resultados de pesquisa. Não será, pois, difícil de prever o fim da neutralidade da Internet, potencia a prática de medidas fortemente anti concorrenciais relativamente à gestão de conteúdos online.

Um segundo argumento, ainda que relacionado com os aspetos económicos, relaciona-se com o próprio conteúdo online. Este argumento diz-nos que a derrogação do princípio da neutralidade da Internet, permitiria, em tese, que os provedores de serviços de Internet viessem a lucrar com conteúdos que os mesmos não produzem, mas que, ao invés, são produzidos por entidades. Este argumento pretende delimitar a divisória entre aquilo que é a prestação de um serviço, neste caso, um serviço de acesso a uma ampla rede de comunicações (Internet), e aquilo que são funções pertencentes às entidades reguladoras. Ora, a cumulação sobre os mesmos sujeitos de poderes de regulação e de participação no mercado, leva não só a uma distorção da concorrência, tal como se afirmou anteriormente, como possibilita que se assista a uma desregulação da atividade dos provedores de serviços de Internet, abrindo portas ao arbítrio. Tal medida, encerrava ainda o perigo de permitir aos provedores de serviços de Internet que venham a restringir, limitar e direcionar os utilizadores aos conteúdos online por si selecionados. Como decorre de um mero juízo de senso comum, não se vislumbra fundamento suficiente para que um jogador seja, em simultâneo, um árbitro.

Por último, anuncia-se um argumento de crucial importância para a atualidade: o efeito nocivo que a derrogação da neutralidade da Internet acarretaria para os direitos das pessoas, com especial enfoque, na proteção de dados. No seio da União Europeia, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) ergue-se enquanto diploma jurídico fundamental para a proteção dos dados das pessoas singulares, conferindo aos utilizadores uma série de prerrogativas que, com efetividade, permitem acautelar os seus direitos. Nesse sentido, a exclusão do princípio da neutralidade da Internet, acompanhada, como se observou, de um tendencial movimento de desregulação da atividade desenvolvida pelos provedores de serviços de Internet, potenciaria a ocorrência das violações dos dados dos utilizadores, uma vez que a fragmentação do acesso aos conteúdos online, permite, com alto grau de facilidade, que se identifique e registe o perfil comportamental dos utilizadores, o que é hoje, ao abrigo do RGPD, tendencialmente vedado. Em suma, o fim da neutralidade da Internet constitui, sob o aspeto em presença, uma forte ameaça aos direitos das pessoas singulares, considerando o atual quadro normativo estabelecido pela União Europeia.