Carlos Neves Simões é o único alfarrabista de Faro da atualidade, tal como era quando chegou ao Algarve na década de 60. Natural de Nogueira do Cravo, Oliveira do Hospital, o Sr. Simões, como é conhecido, rumou até ao Algarve para abrir um negócio de máquinas de escrever, mas o seu caminho rapidamente se cruzou com os livros, que são para si uma paixão.

Recentemente, o Sr. Simões foi notícia por ter sido despejado do local onde ele e os seus livros se encontravam há mais de 20 anos. Para perceber como está atualmente e qual o futuro dos mais de 500 mil livros deixados para traz, “A Voz Do Algarve” foi ao encontro do único alfarrabista de Faro.

 

A Voz do Algarve – Qual foi a razão que o levou a vir para o Algarve e como se deu o início do seu negócio nesta região do país?

Carlos Simões – Eu e a minha família somos de Oliveira do Hospital e viemos para Faro, na década de 60, abrir uma delegação da empresa de máquinas de escrever Messa, onde trabalhava. Entretanto a empresa fechou e tornei-me depois vendedor de produtos de publicidade, até que em 1982 abri a livraria. Na altura, não havia nenhum alfarrabista aqui no Algarve e como eu gostava, e ainda gosto, muito de livros, iniciei este negócio. Para além disso, coincidiu com a abertura da Universidade de Faro e para realizar certos trabalhos académicos eram necessários alguns livros que só eu tinha.

 

V.A. – Atualmente, ainda é o único alfarrabista no Algarve?

C.S. – Há agora um alfarrabista em Quarteira, há relativamente pouco tempo. Mas com a dimensão que aqui tenho, no Algarve, penso que sou o único. Há também algumas pessoas que reúnem uma série de livros e vendem nos mercados, mas não é exatamente a mesma coisa em comparação com o trabalho que tenho feito. E quando cheguei ao Algarve era mesmo o único. Também por isso fui medalhado de mérito, pela Câmara Municipal de Faro, em 2013.

 

V.A. – Considera os algarvios consumidores habituais deste género de livros?

C.S. – Para ser sincero, estou um pouco desiludido com o Algarve e acredito mesmo que fui grande demais para esta região do País. Só cidades como Lisboa, Porto e Coimbra devem ter capacidade para albergar este negócio. Aqui, na livraria, tenho oito metros de estante com livros de e sobre o Algarve, dividida pelas várias cidades da região… Contudo, passam-se meses sem que apareça quem venha pedir livros da região.

 

V.A. – Qual é o papel do alfarrabista e de que forma se diferencia de uma livraria comum?

C.S. – «Alfarrabista» quer dizer que aquilo que compra e vende são livros velhos e usados. Atualmente, no meu caso, já não faço aquisição, mas sim aceitação. Se as pessoas, por exemplo, aqui de Faro me contactarem a dizer que têm determinados livros para dar, eu desloco-me ao local e vou buscar. Se for fora de Faro, já não é possível, porque não tenho como os ir buscar. Mas se as pessoas quiserem, estou cá para os receber.

 

V.A. – Como se dá a procura de um livro aqui na sua loja, tendo em conta a quantidade elevada de títulos que tem à disposição?

C.S. – Hoje em dia utilizo o computador, que tornou tudo mais fácil. Mas antes tinha uma lista das várias editoras em Portugal e quando a pessoa me dizia qual a editora do livro, eu procurava a partir daí. As três condições fundamentais para encontrar um livro são o título, o autor e a editora.

 

V.A. – Quais foram as razões que o levaram a ser despejado do espaço onde se encontrava anteriormente?

C.S. – Desde há 10 anos que o negócio está mais complicado o que me levou a atrasar os pagamentos ao senhorio em mais de um ano, cuja renda era no valor de 700 euros. Há 10 anos este custo era suportado pelas vendas, até porque houve anos em que faturei 300 mil euros em livros. Mas na última década já não tem sido assim. Entretanto, o proprietário quis construir um consultório para a sua filha naquele local e colocou-me em Tribunal. Fui despejado no dia 28 de julho de 2015 por dois agentes da polícia, um oficial de justiça, a advogada do senhorio e o serralheiro. Nesse dia tive que sair e deixar para trás todo um património. O espaço era muito grande, tinha perto de 190 metros quadrados, e milhares de livros, que ainda lá estão. Para ter uma ideia, aqui, onde me encontro atualmente, o espaço deve ter aproximadamente 120 metros quadrados. Entretanto o senhorio faleceu e agora são os herdeiros que estão a dar continuidade ao processo.

 

V.A. – Quantos livros ficaram no espaço de onde foi despejado? Qual o seu futuro e dos livros que lá deixou?

C.S. – Lá devem estar uns 500 ou 600 mil livros ainda e, apesar de não ser possível precisar, penso que deverão valer cerca de 500 mil euros. Porém, eu assinei um documento onde rescindi de todos os livros e bens existentes no local na altura em que a situação ocorreu, mas hoje creio que talvez não o devesse ter feito. A verdade é que já tenho 72 anos e se ficasse com os livros não teria local onde os colocar. Porém, ao contrário do que foi dito, nunca ofereci livros por não ter espaço onde os colocar. Aliás, eu não posso doar nada daquele espólio, porque agora é tudo propriedade dos herdeiros do senhorio.

 

V.A. – Para além da livraria onde agora se encontra, existe mais algum local onde faça venda de livros?

C.S. – Faço também venda de livros numa banca, de terça-feira a sexta-feira, das 9h00 às 12h00, nas Arcadas da Rua de Santo António. Normalmente aproveito essa oportunidade também para apontar pedidos que me são feitos e é uma forma de dar visibilidade ao negócio. Por norma, coloco os livros mais baratos, de 1, 3, 5 e 10 euros, sendo estes últimos livros mais monumentais. Já na livraria, tenho livros de todos os géneros e preços.

 

V.A. – Acredita que o livro continua a ter a mesma importância que tinha no período em que iniciou a sua atividade como alfarrabista?

C.S. - Há cerca de 10 anos que o livro deixou de ter a importância que tinha, mas acredito que voltará ao que era. A verdade é que continua a haver procura de livros mais antigos, até porque muitos deles não têm registos na internet. Uma das maiores críticas que faço é à investigação universitária, que atualmente é toda feita na internet e os docentes aceitam isso. Acredito que a melhor ferramenta que a humanidade tem nos dias de hoje são os livros. Os computadores são também uma ferramenta importante, mas a melhor é mesmo o livro.

 

V.A. – Quando já não puder dar continuidade ao negócio, quem tomará conta da livraria?

C.S. – Essa é a minha grande preocupação, até porque sei que o meu filho não ficará com o negócio. Tem outros interesses profissionais. Eu já estou reformado, mas continuo a trabalhar aqui pelo gosto que tenho aos livros, e porque esta livraria é quase como um filho para mim, e  apesar de já estar um pouco cansado, preciso de ter a certeza  que quando deixar o negócio alguém seguirá com o trabalho que tenho feito até aqui. Por isso mesmo, se houver alguém interessando em investir, eu estou recetivo a propostas, disponível para ensinar o que for preciso para depois a pessoa poder seguir com o negócio. Penso que se justifique que se continue a defender o livro, como eu tenho defendido, aqui em Faro. Embora tenho consciência de como é difícil tendo em conta a conjuntura económica…

 

V.A. – Quando foi despejado e se viu prestes a perder milhares de livros, esperava que alguém ou alguma Instituição o ajudasse a encontrar uma solução? 

C.S. – Sim, esperava… Já aconteceu em várias localidades, certas instituições tomarem posse da cessação da atividade e ficaram com o acervo… Mas comigo isso não aconteceu. Também fiz a oferta ao Município, dei a entender… esperava que me apoiassem, até porque fui medalhado pela autarquia há dois anos, como lhe disse, mas a Autarquia não reagiu… Se o Município se prontificasse a ficar com isto, eu doava tudo, sem contrapartidas, e eu ficava mais descansado, sabendo que tudo isto ficava bem entregue.

 

Por Nathalie Dias