Joaquim Bispo, escritor diletante, http://vislumbresdamusa.blogspot.com/

Quando “aquilo” se materializou no quarto de Ernesto, passava das três da manhã. Tinha estado na comissão de autogestão da fábrica e, proposta puxa discussão, tinha bebido umas três ou quatro cervejas. O verão de 75 ia quente em todos os sentidos.

- Quem me mandou não gosta de rebeldes. Gosta que a hierarquia esteja bem definida e que o de baixo obedeça ao de cima.

O 25 de abril rompera as comportas que tinham mantido a multidão obediente, casta e temente e esta inalava, impertinente, os primeiros aromas da liberdade.

- Por que é que não prefere a liberdade das pessoas e a livre adesão aos seus preceitos? Ou a livre rejeição? Como é que se pode sentir satisfeito de mandar em autómatos?

- Ele vê é que, com a ordem antiga, todos eram felizes. Já viste alguém feliz nesta revolução?

- Sim, muitos, loucos de felicidade. Pela primeira vez são donos das suas vidas.

- Loucos, dizes bem! A revolução pôs filhos contra pais, casais desavindos. Os partidos, de que até o nome é revelador, destroem a harmonia da sociedade.

- Os partidos são a expressão, crispada, mas necessária, que faz circular na sociedade os vários conceitos da sua própria organização. Vocês não têm partidos?

- Lá, donde eu venho, a harmonia não tem ameaças. Todos aceitam o seu nível celeste.

- Não será bem assim! Tanto quanto sei, já houve revoltas. Não foi lá que Lúcifer bateu o pé ao teu patrão?

- Sim, há esse episódio…

- E essa tal harmonia não corre o risco de um dia ser alterada pela tomada do poder por Lúcifer?

O anjo perdeu por momentos a sisudez e riu-se com gosto, demoradamente.

- O Lúcifer foi um caso de sucesso. Está tão integrado e é tão necessário como é o sistema judicial em qualquer sociedade humana.

Uma náusea de repulsa sacudiu Ernesto. Que desígnio tão totalitário! Afinal, não havia oposição entre entidades sobrenaturais benfazejas e outras maléficas. Estavam todas conluiadas contra a liberdade de autodeterminação do Homem. Como as forças da exploração. Abriu a janela, aspirou o ar fresco da noite e declarou:

- A partir de agora, não acredito em tretas nenhumas dessas! Não quero. E, mesmo que acreditasse, seria contra!

Ou fosse porque os últimos vapores de álcool abandonaram os seus pulmões ou porque o mito não encontrou ali guarida, o certo é que, quando se voltou, não viu anjo algum