Paulo Freitas do Amaral, Historiador e Autor
Imaginemos Atenas. Não a do turismo ou das ruínas, mas a do pensamento vivo. Na colina do Areópago, entre as sombras do olival e o pó das sandálias, reuniram-se os grandes. Heródoto, Hipócrates, Sófocles, Platão, Aristófanes, todos convocados para um conclave urgente. Estavam indignados. Um jovem discípulo de Aristófanes — um autoproclamado “intocável do humor” — defendera que os humoristas não podiam ser julgados por coisa alguma, pois tinham, dizia ele, “uma função moral, quase sagrada, na polis”.
 
Foi Hipócrates o primeiro a levantar-se, com a compostura de quem lavou muitas feridas e encarou a morte nos olhos. “Desde quando fazer rir pesa mais que curar a febre ou a peste? E se um médico errar, quem morre é o corpo; mas se um humorista errar, quem morre é o carácter dos outros.” Heródoto acenou com a cabeça. “Eu recolhi histórias de reis, guerras e povos. Fui acusado de mentiroso, de bajulador e até de estrangeirado. Mas nunca pedi imunidade por relatar o mundo. Por que razão, então, o cómico deveria ser declarado inviolável?”
 
Aristóteles, que nunca perdia uma oportunidade para organizar ideias, resumiu: “A comédia tem o seu lugar, sim, mas só é elevada quando reconhece os seus limites. Caso contrário, degenera em desdém travestido de liberdade.” E Platão, impassível como sempre, recordou a República: “O riso desenfreado é sinal de descontrolo da alma.” Já Sófocles, habituado a tragédias, murmurou: “A ironia é bela quando serve o justo. Mas quando fere os inocentes, deixa de ser arte e torna-se instrumento de vaidade.”
 
Ao longe, ouviu-se Aristófanes suspirar. “O humor deve ser livre”, disse, “mas não irresponsável.” E com isso selaram o veredito: não há toga para quem se exime do peso dos próprios actos, invocando para si uma liberdade que nega aos outros.
 
Hoje, dois milénios depois, há quem invoque os gregos como se fossem seus fiadores — e o façam com a ligeireza de quem cita Platão entre dois tweets, ou usa Sócrates como escudo moral para um sketch que expõe outrem à chacota nacional. Não lhes interessa a verdade, mas apenas a justificação. Como diria Nietzsche — que não estava em Atenas, mas devia ter sido convidado: “A arte deve criar beleza, não escárnio. Caso contrário, transforma-se numa feira de vaidades.”
 
O que está em causa não é censura, nem processos judiciais. É a velha questão da humildade. Todas as profissões erram. Mas só algumas se habituaram a disfarçar o erro de coragem. Médicos, professores, juízes e jornalistas são criticados, julgados e respondem pelos seus actos. Por que motivo haveria o humor — esse sublime tempero do espírito — de escapar ao escrutínio da ética?
 
O jovem discípulo de Aristófanes, dizem, saiu da assembleia com um ar pesaroso. Continuava convencido da sua importância civilizacional. Mas ali aprendeu que até o humor, quando se leva demasiado a sério, corre o risco de deixar de ter graça.